Sai nesta semana oficialmente a graphic novel Sabor Brasilis, que coloca a relação do brasileiro com a telenovela sob os holofotes. Escrita por Hector Lima e Pablo Casado, com arte de Felipe Cunha e George Schall, a HQ conta a história da equipe de roteiristas da novela que dá nome ao livro, seus dramas pessoais e a trama do programa líder de audiência no horário nobre, que acaba de ter uma de suas personagens principais brutalmente assassinada. E é com uma simples pergunta começa a história do livro: “quem matou Olívia Ribeiro?” “O público adora um bom mistério numa novela, seja um assassinato ou personagem sobrenatural”, comentou Pablo Casado. “Se você tem personagens carismáticos, o suspense é tudo o que você precisa para manter ainda mais o telespectador grudado na tela. Optamos pela linha do assassinato em homenagem à morte da Odete Roitman, de Vale Tudo, que até hoje é lembrada pela audiência com um marco das telenovelas.” O livro se desenvolve seguindo a vida do autor da novela, Antônio Callado, e sua equipe de roteiristas. Embaraçados nas complicações de seus próprios cotidianos, eles precisam trabalhar juntos para desenrolar os fios da trama de Sabor Brasilis. Tudo isso em meio a um turbilhão de cobertura da imprensa e de complicações internas com os interesses da rede de televisão. Aproveitando-se do mainstream para contar uma história original e engenhosa, a HQ se apropria de referências e de velhos mecanismos utilizados nas novelas desde o início do formato. Com isso, faz um pouco o que a novela Avenida Brasil fez recentemente: pega uma fórmula clássica e adiciona elementos modernos de linguagem sem desfigurar aquilo que o público aprendeu a ver como natural. “Quando decidimos produzir uma graphic novel, queríamos abordar um tema que tivesse não apenas apelo junto ao público, mas que fosse algo da nossa cultura“, continuou Pablo. “Falem bem ou mal, a novela sempre está na boca do povo. É tão mainstream pra gente quanto futebol. E fugir da paródia seria o primeiro passo para não cair no lugar-comum ao retratá-la. Então decidimos levar o foco para os bastidores, para os roteiristas, estabelecendo um ‘drama da vida real’ que o público adora nas novelas.” Roxo e pêssego A arte de Sabor também merece seu destaque. Ambientada em São Paulo, a HQ traz cenários comuns ao paulistano representados de forma brilhante conforme a trama avança. São bancas de jornais, cartões postais e pequenos detalhes que vão capturar os olhos de quem conhece minimamente a cidade. No lugar do tradicional preto/branco/cinza normalmente utilizado para cortar custos sem diminuir a qualidade da arte, os desenhistas optaram por uma combinação diferente de duas cores. "A princípio, o álbum teria só o preto e variações tonais (cinzas) pra dar profundidade e volume aos desenhos. Uma vez que o projeto foi selecionado pelo ProAC [Programa de Ação Cultural do Governo do Estado], começamos a conversar sobre fazer algo diferente, já que cores extras aumentam o custo de produção”, explicou Felipe Cunha. “O George fez alguns estudos com combinações diferentes e finalmente chegamos a essa combinação de roxo escuro com um laranja meio pêssego. Como são duas cores, ao variar as porcentagens de tons de cada uma, temos essa sensação mais rica.“ "Vivemos um bom momento de valorização dos trabalhos nacionais, com mais gente comprando e editoras se interessando em publicar esses materiais", Pablo Casado De acordo com o próprio Felipe, a inspiração maior para o uso dessas cores veio do álbum Asterios Polyp, do americano David Mazzucchell (Demolidor, Batman: Year One). Mas esse não é o único grande desenhista homenageado em Sabor Brasilis. Em uma passagem marcante e cheia de movimento, Antonio Callado sai de uma entrevista na TV e vai andando pelos corredores da emissora até a sala dos roteiristas. A sequência é quase cinematográfica e mostra muita intimidade dos artistas com o formato. A ideia foi, segundo Cunha, uma espécie de citação ao mestre da HQ, Will Eisner. “Essa é uma sequência do George, que segundo ele foi ‘Will Eisner total’ [risos]. É uma passagem cinematográfica que usa toda o espaço e composição de página pro timing. Eisner tinha essa coisa de brincar com a diagramação das páginas e usar formatos e espaços à favor de movimento, e aqui, ao usar grandes áreas em branco entre os quadros, conseguimos uma fluência e naturalidade pois aumenta a sensação de passagem de tempo”, comentou Felipe. “A 'câmera' totalmente horizontal, ao nível do chão e sempre focada no Callado faz nossos olhos percorrerem aquele espaço todo como se ele estivesse de fato andando pela página.” HQ nacional O projeto de Sabor começou em 2010. Nesses dois anos, o quarteto de roteiristas e artistas enfrentou dificuldades para colocar no mercado uma graphic novel cheia de elementos culturais tipicamente nacionais. Mas apesar de tudo, o resultado final valeu a pena. “O problema maior em publicar no Brasil um álbum como esse é sempre financeiro. Não há carreira em quadrinhos nacionais, pelo menos por enquanto. Quando houver uma demanda grande o suficiente por HQs nacionais, essa situação pode mudar. Afinal, será necessário ter profissionais para cumprir essa demanda, mas é um processo longo e difícil de prever”, refletiu Felipe. “Vivemos um bom momento de valorização dos trabalhos nacionais, com mais gente comprando e editoras se interessando em publicar esses materiais. Se continuar crescendo no mesmo ritmo, é possível que um dia o Brasil se torne um mercado rentável para todos os envolvidos.” “A maior dificuldade é que os quadrinistas que se dispõem a produzir algo do tipo não vivem disso”, concorda Pablo. “É complicado colocar na rua uma graphic novel de 120 páginas com contas a pagar, pegar no batente das 8h às 18h e aproveitar seus momentos de lazer e descanso com a família. Veja bem, não estou reclamando: é a realidade do grosso dos quadrinistas brasileiros e quem produz o faz porque tem amor pelo negócio. Tem gente que banca suas produções do próprio bolso e outros que são publicados sem ganhar nada das editoras. Parece desanimador destrinchando a situação assim, mas dá pra fazer. E imaginar que alguém pode ler e gostar do seu quadrinho acaba sendo uma motivação tão grande quanto produzi-lo.” A HQ terá tarde de autógrafos na Gibiteria, em São Paulo, dia 23/02, e já está à venda em lojas especializadas e grandes redes. Vai lá: HQ Sabor Brasilis
Editora Zarabatana Books
128 páginas
Preço sugerido: R$ 45
www.saborbrasilis.net
Tarde de autógrafos: Gibiteria - Praça Benedito Calixto, 158 - 1º andar, São Paulo/SP
23/02, sábado, a partir de 17h
Sabor Brasilis
Senão você dança
Reprodução
Capa do primeiro disco dos Engenheiros do Hawaii, Longe demais das Capitais (1986)
Preparando disco solo, o ex-Engenheiro do Hawaii Humberto Gessinger lembra de seu primeiro hit sulino.
Quase 30 anos após cantar seus versos “Você precisa de alguém que te dê segurança/senão você dança”, Humberto Gessinger se sente seguro para lançar o primeiro álbum solo em abril. Já “Segurança”, a canção (1985), surgiu para os Engenheiros do Havaii numa época em que nada parecia tão tranquilo.
“A gente excursionava pelo Sul e ‘Segurança’ tocava nas rádios, era a única música que conheciam da gente. Lembro que levávamos os pratos da bateria no cobertor da mãe do Carlos [Maltz, que dividia a banda com Humberto e o baixista Marcelo Pitz], presos com fita-crepe, e achávamos isso o maior profissionalismo. Fora do Sul, nem chegou a ser um grande hit”, diz Gessinger, que mal se lembrava que a música tinha sido incluída até numa trilha de novela, Corpo santo, da falida Rede Manchete (1986).
Yuppies nos anos 80, hipsters de agora, eis o tema da letra – que fala de um bon-vivant que “tinha um Puma GT com vidro fumê” e “vestia Yves Saint Laurent”. “Um locutor de rádio falou: ‘Essa música é um hino para nós, que somos assaltados, não temos segurança!’. Mas não era nada disso!”, diz Gessinger, lembrando ter recorrido a uma ironia da qual sentia falta nas bandas.
“Era para falar sobre as pessoas que buscam segurança nos símbolos de status. Aquela coisa meio playboy”, explica.
Segunda chance
Na praia da Cacimba do Padre, um dos cartões-postais de Fernando de Noronha e principal pico de surf do arquipélago, o big rider Aldemir Calunga aguarda a chegada do tubo de seus sonhos. “Vem vindo um swell atípico do continente”, conta, animado. “Você não tem noção de como é bom surfar nele!” O potiguar de 37 anos começou 2013 no chamado Havaí brasileiro menos para surfar do que para recompor as forças, físicas e mentais, depois do dramático acidente que quase lhe tirou a vida na praia de Zicatela, em Puerto Escondido, México. A história não sai da cabeça de Calunga. Era um domingo, 2 de setembro, quando, após sair de uma onda de 8 pés, foi atingido por sua própria prancha no rosto. A tábua lhe perfurou a bochecha, quebrou três dentes até atingir seu crânio. O big rider apagou na hora e afundou no mar. Ao verem que havia algo errado, três surfistas foram ao local e puxaram Calunga pelo strap (cordinha que prende a prancha ao tornozelo) até a superfície, mas as fortes ondas espalharam todos novamente. Foi quando entrou em ação o bombeiro carioca Marcos Monteiro, que, por sorte, estava por perto. “Remei em direção ao Calunga e segurei o corpo dele. Ele estava desacordado, espumando pela boca e pelo nariz e com sangue jorrando do rosto”, lembra ele. “Por causa do mar agitado, o jet ski não conseguia chegar. Então, com ondas batendo na cabeça, carreguei Calunga nos braços até a areia”, conta o salva-vidas de Saquarema, que também é surfista de ondas grandes. “O big rider vive nesse edge. De um lado, a busca incessante pela superação. Do outro, a morte” Da pancada no rosto até chegar à praia foram seis longos minutos. “Calunga tinha função cerebral, mas o coração havia parado”, explica o bombeiro. Monteiro e outros salva-vidas fizeram a reanimação cardiopulmonar. Minutos depois, o surfista voltou a respirar. Uma ambulância o levou até o hospital da região e, de lá, foi transferido para a Cidade do México, onde ficou em coma por oito dias. A notícia correu o mundo e formou-se uma corrente de oração envolvendo fãs, amigos, familiares e alguns dos maiores big riders do planeta. “Calunga é muito querido e admirado”, diz Carlos Burle, ex-campeão mundial de surf em ondas grandes e vencedor da estatueta de maior onda de 2002 no Billabong XXL, a principal competição de surf em ondas gigantes do mundo. “É um surfista com manobras fortes, um excelente tube rider! O acidente nos deixou bastante apreensivos”, acrescenta Burle. Outro big rider, Pedro Scooby, concorda: “Todo mundo orou por ele. Eu orei muito”. Irmãos de remada Quando acordou do coma, Calunga não se lembrava do que tinha ocorrido no México. Ainda não se recorda. “Só me lembro da hora em que a prancha bateu e de momentos no hospital.” Nos primeiros meses de recuperação, as ideias estavam confusas e o pensamento era difícil de elaborar. “Mas agora está tudo bem, as ideias não embaralham mais. Só me restou uma pequena fratura no crânio. Preciso tomar cuidado porque posso ter ataques epiléticos. Graças a Deus, não tive nenhum, e espero não ter”, explica. Para evitar crises, passou a tomar remédios e fazer tratamento psicológico. “O psicólogo recomendou que eu buscasse um lugar onde me sentisse em paz e seguro para voltar a surfar. Por isso vim a Noronha.” Ironicamente, nesse período foi registrada uma das maiores ondulações já vistas na ilha. Ondas de 5 metros afundaram barcos e interditaram praias. Quando falamos com ele, Calunga tentava obter passagens para levar o bombeiro que o salvou para pegarem onda juntos no arquipélago. Fã de Calunga, Monteiro conheceu o ídolo no México. “Sabia que ele era fera não só no surf, mas gente boa também.” Um mês após o acidente, num evento promovido pelo canal de esportes ESPN, os dois se reencontraram em Natal (RN), terra onde Calunga, que mora em Fortaleza (CE), nasceu. Passearam pelas ruas, encontraram amigos e surfaram. “Somos irmãos agora. Temos planos de voltar a Puerto Escondido juntos”, diz o big rider potiguar. “O mar te devolve o que você dá. É uma troca perfeita e exata” Sobre o acidente, Calunga afirma não ter restado trauma, apenas os dentes quebrados, a cicatriz no rosto e a fratura no crânio. “Mas tá beleza, não tô nem aí pra isso. O importante é que estou surfando”, diz. A grande lição, diz, é que, além das medidas de segurança, é preciso ter uma atitude de reverência ao mar, sem a arrogância de quem acha que pode tudo. “O big rider vive nesse edge. De um lado está a adrenalina da busca incessante pela superação e do outro lado está a morte. É fundamental ter amor e respeito pelo mar porque ele te devolve o que você dá. É uma troca perfeita e exata. Eu acredito nisso.” A prática do surf de ondas grandes ganha cada vez mais adeptos no Brasil e no exterior. A facilidade de equipamentos como o jet ski – usado para levar o surfista até a onda – ajudou a popularizar o esporte. “Mas tem muita gente querendo pegar onda grande sem o menor preparo. E não é brincadeira. O Calunga é um cara super experiente e olha o que aconteceu”, alerta o big rider Pedro Scooby. E acrescenta: “Se algo sai errado, é a sua vida que está em jogo. Não é um esporte como o vôlei, em que no máximo você torce o joelho. Por isso é fundamental estar preparado”, diz o atleta. Exemplos de acidentes fatais não faltam. Na mesma praia de Zicatela, onde Calunga se acidentou, outro grande surfista, o californiano Noel Robinson, morreu afogado em 2010 após ser atingido pela prancha. Calma e força “Acidentes acontecem, mas o surfista deve se preparar física e psicologicamente para a hora do imprevisto. Ele precisa manter a calma para tomar as decisões certas, ser forte o suficiente para aguentar as porradas das ondas e flexível para não romper ligamentos. Deve treinar força e alongamento”, afirma Carlos Burle. O uso de equipamentos adequados é fundamental. “O que fez Calunga desmaiar foi a pancada da prancha na cabeça. Ele poderia ter evitado usando uma cordinha maior e se protegendo com as mãos. Usar capacete ajuda muito”, recomenda Burle. “Há coletes infláveis usados tanto para o tow-in, surf de reboque com jet ski, como para o surf de remada. Se Calunga estivesse com um, teria ajudado muito no resgate”, diz Marcos Monteiro. Outra recomendação é estar sempre acompanhado de outros surfistas e de uma equipe de salvamento.Depois de quase perder a vida em um acidente em Puerto Escondido, no México, o Big Rider Aldemir Calunga volta a surfar. Seu próximo plano é retornar ao local com o homem que o salvou da morte
Redução de riscos
Drauzio Varella
Nas aulas de catecismo que o preparavam para a primeira comunhão, o menino ouviu que não deveria jamais morder uma hóstia: aquilo era o corpo de Cristo, e o risco era acabar com a boca cheia de sangue. No dia da comunhão, não ousou desobedecer – imagine sujar o terninho de linho branco? Mas a pulga não lhe saiu de trás da orelha até o dia em que veio a chance de comprovar se a estranha ameaça era verdadeira. Foi na missa de bodas de prata dos tios. Livre do papel de protagonista, o garoto mordeu com gosto a pastilha de farinha e água e esperou. Nada. A missa seguiu. O evento, aos 10 anos, foi definitivo para Drauzio Varella. Ali, apesar da pouca idade, ele entendeu que a crença em fenômenos sobrenaturais e, mais que isso, o conceito de um ser supremo, que exige fé inabalável e não admite dúvida, não lhe serviam. Por mais que a ideia de um protetor invisível desse segurança aos mortais, ele tinha questionamentos demais. Só poderia virar o que virou: cientista. E ateu. Antonio Drauzio Varella nasceu há 70 anos, completados em janeiro, no Brás, na zona leste de São Paulo. A mãe, Lydia, morreu aos 32 anos de uma doença degenerativa, deixando Maria Helena, Drauzio e Fernando (então com 7, 4 e 2 anos) sob os cuidados do pai, o contador José Varella. Pepe, filho de um espanhol da Galícia, desdobrou-se entre dois empregos para garantir os estudos dos filhos até chegarem à universidade, na época algo improvável para os nascidos naquele pedaço da cidade. Drauzio honrou os esforços do pai: foi o segundo colocado no vestibular da Faculdade de Medicina da USP, onde ingressou em 1962 e fez companheiros como João Carlos di Genio, com quem fundaria, em 1965, o cursinho Objetivo, hoje um império em educação privada. São amigos até hoje. Os anos como professor lhe deram dinheiro o bastante para terminar a faculdade e começar na medicina sem precisar pular de um hospital para o outro para conseguir sobreviver. Foi em 1985, já com vasta experiência no setor de imunologia do Hospital do Câncer, em São Paulo, que Drauzio participou, na Suécia, de um congresso sobre a aids. Na volta, conseguiu publicar no jornal O Estado de S. Paulo um artigo sobre a terrível novidade. Era a estreia em comunicação, área em que se tornaria celebridade. Foi no papel de maior especialista do país em aids que o médico teve o primeiro contato com a Trip: em entrevista ao programa de rádio Trip FM (então veiculado pela 89 FM, em São Paulo), em 1994, Drauzio falou com a peculiar franqueza sobre a doença que ainda era fortemente associada a homossexuais e usuários de drogas injetáveis. O mesmo tom, direto, sem rodeios, pontuou a série de pílulas informativas sobre a doença que ele passou a apresentar na mesma rádio. “Cai fora da seringa, cara. Se você não consegue encarar a vida de cara limpa, fuma, cheira, faz supositório. Mas não injeta na veia” dizia um de seus textos desconcertantes na rádio. Gabriel RInaldi Drauzio Varella Anos antes, em 1989, a gravação de um vídeo educativo sobre a transmissão do HIV o levou pela primeira vez à Casa de Detenção de São Paulo. Drauzio era fascinado por cadeias desde os tempos em que frequentava o extinto cinema Universo, cujo teto retrátil deixava ainda mais emocionantes as sessões de Força bruta, com Burt Lancaster. Pouco depois, virou médico voluntário da Casa, o superlotado complexo de pavilhões onde 111 presos foram mortos pela polícia em 1992 e que acabaria implodido dez anos depois. O doutor Drauzio não estava na cadeia no dia, mas seu contundente relato do massacre é o ponto alto de Estação Carandiru, livro lançado pela editora Companhia das Letras em 1999 em que conta suas histórias como médico dos detentos. Além do best-seller, transformado em filme pelo amigo Hector Babenco, Drauzio publicou outros oito livros pela editora. O mais recente, Carcereiros, marca sua volta ao tema de estreia – a penitenciária onde atuou por mais de 20 anos, mas agora sob a ótica dos agentes que lá trabalhavam. A escrita lhe deu alegrias e reconhecimento. Além dos livros, Drauzio publica semanalmente artigos na Folha de S.Paulo em que não se furta a tocar em temas espinhosos – do aborto à proibição da camisinha pela Igreja católica, da aids às pesquisas com células-tronco. Em termos midiáticos, no entanto, nada se compara ao alcance conseguido a partir de outubro de 2000, quando o médico fez sua primeira aparição no Fantástico, da TV Globo. De lá para cá, virou o médico mais pop do Brasil ao apresentar séries sobre variadas questões da saúde pública: obesidade, gravidez, transplantes, diabetes, planejamento familiar. Em 2011, com a série “Brasil sem cigarro”, virou o mais famoso porta-voz do antitabagismo. Fumante por 19 anos – hábito que começou na adolescência, quando não sabia o que fazer com as mãos nas festinhas, e terminou quando se deu conta do grau de dependência a que chegara –, Drauzio perdeu o irmão caçula para um câncer de pulmão, aos 45 anos. Mas nenhuma experiência com a morte, seja de pessoas queridas, seja dos pacientes que perdeu no exercício da profissão, foi tão reveladora quanto a vivida na própria pele: Drauzio quase morreu em 2004. De volta de uma das inúmeras viagens que fazia (e continua fazendo) pelo rio Cuieiras – um afluente do rio Negro, a quatro horas de barco de Manaus, onde coordena pesquisas botânicas e de bioprospecção (o trabalho, feito em parceria com a Universidade Paulista, a Unip, consiste em testar extratos de plantas em células malignas e bactérias muito resistentes, em busca de novos medicamentos), Drauzio acordou um dia com quase 40 graus de febre, calafrios e forte dor nas costas. Era febre amarela. A “sensação do ridículo” por ter negligenciado uma vacina básica – logo ele, que vive de apontar para o público os perigos dessa vida – foi só um dos aspectos que ele relataria ao escapar da quase morte, aos 61 anos, em mais um livro, O médico doente. Dormindo em média seis horas por noite (“às vezes, com cinco já dá pra aguentar”), Drauzio divide a apertada agenda entre as gravações de TV, o atendimento a detentas da penitenciária feminina de São Paulo, os textos para o site (drauziovarella.com.br, que ele afirma ter mais de 3 milhões de acessos mensais), as viagens à Amazônia, a participação em maratonas mundo afora. Mas ainda é a prática da medicina sua principal ocupação. Cancerologista renomado, divide-se entre o Hospital Sírio-Libanês e um consultório localizado logo em frente. É uma convivência intensa com doentes muitas vezes terminais, algo que o fez compreender que a função do médico não é exatamente a de curar (coisa que, em muitos dos casos que trata, é impossível), e sim tornar melhor a vida dos pacientes. Casado há 31 anos com a atriz Regina Braga, pai da editora e tradutora Mariana, 39 anos, e da médica Letícia, 36, avô de Manoela, 8, e de Helena, 2, Drauzio se dedica a tantas coisas simultaneamente por gostar da diversidade da vida. Com todos os perigos que ela tem. Você acaba de completar 70 anos. Esse número tem um peso? E foi aos 50 que você começou a correr maratona, não é? De onde veio essa decisão? A corrida lhe deu a prova de juventude de que precisava? “Não dá pra ter saudade de quando se tinha 15 anos, dá? eu não tenho saudade nem de quando eu tinha 50” Continua participando de provas? Um tema inevitável nesta edição é segurança pública. Desde que lançou Estação Carandiru, em 1999, você é requisitado para falar do assunto. Você gosta disso? Mas o trabalho em presídios lhe dá uma visão que poucos têm do sistema. Por que exatamente você escreveu Estação Carandiru? E o que o fez lançar Carcereiros só agora, 13 anos depois? “Se o código penal mudasse, se acabasse a história de a droga ser ilegal, esvaziaria a penitenciária feminina onde eu trabalho” O que pensa sobre a onda de assassinatos que vem acontecendo em São Paulo? Existe a guerra, apontada por especialistas, entre polícia militar e PCC? Você já declarou que o PCC teve origem no massacre do Carandiru. Por quê? Que razões você apontaria? Arquivo pessoal Registros das viagens à Amazônia, onde desde 1992 faz pesquisas de biotecnologia E aí vai parar na cadeia. Você defende penas alternativas para esses casos? Tem esperança de que essa discussão ganhe força? A saída é regulamentar a venda, como se faz com cigarro e bebida? Existe o argumento de que, se liberado, o consumo vai aumentar. Você tem alguma ligação com a Comissão Global das Drogas, da qual faz parte o Fernando Henrique Cardoso? Muito antes da sua conhecida cruzada antitabagista, você fumou por 19 anos. E outras drogas, você usou? Você perdeu a mãe aos 4 anos. Tem lembranças dela? E seu pai, como era? “Imagina um médico interessado em saúde pública ganhar espaço num programa que está há não sei quantos anos no ar? E ainda dizerem ‘faz o que você quiser’. Eu fui, né?” Ele já morreu? E da adolescência, as lembranças também são boas? Desde quando você é careca? Esse, é um fator de insegurança comum entre os homens. Foi pra você? Você diz que jamais cogitou ser outra coisa que não fosse médico. De onde veio a certeza? Foi na época da faculdade que você e João Carlos di Genio fundaram o Objetivo, hoje um grupo gigante na área de educação. Como foi essa história? Arquivo pessoal Drauzio em gravação do Fantástico Por que esse nome? E como vocês resolveram? Por quanto tempo você ficou na sociedade? A coisa de escrever, como surgiu? E a entrada na TV Globo, como foi? Esse alcance que você tem com a TV nunca o fez pensar em abandonar a clínica médica? Como especialista em câncer, você já perdeu muitos pacientes. Como lida com isso? A relação com os doentes e com a possibilidade de morrerem sob seus cuidados mudou com o tempo? Essa conversa é mais fácil para você hoje? “Estudante, experimentei maconha, mas não gosto da sensação de perda do controle. Toda vez que bebo um pouco a mais me sinto mal” E quando quem estava à beira da morte era você, por causa da febre amarela? Você teve medo? Você é ateu. Nem quando quase morreu houve a tentação de buscar uma explicação religiosa, esotérica para a vida? Comparando com sua infância e outros períodos da vida, você acha que vive num lugar mais seguro ou inseguro hoje? Falando em aids, como anda a política brasileira para a doença? Você crê que em 15 anos podemos chegar ao fim da epidemia, como aposta Luiz Loures (brasileiro que dirige a Unaids, na ONU)? Desde 1992 você vai à Amazônia regularmente, para pesquisas de biotecnologia. Como vê a discussão sobre biopirataria e o temor de que estrangeiros roubem a riqueza da floresta? Você já deixou de fazer algo na vida por insegurança? Você conheceu sua mulher (a atriz Regina Braga) em um curso de teatro. Você queria ser ator? E a professora era a Regina? Não faz muito tempo que Regina declarou que é bissexual. Na verdade, declarou que “somos todos bissexuais e deveríamos discutir sexualidade mais abertamente”. O que você achou? Com a experiência de quem lida há mais de 40 anos com pacientes com câncer e aids e há mais de 20 com homens e mulheres encarcerados em presídios, Drauzio Varella, o médico mais popular do país, se tornou especialista involuntário em dois dos fantasmas que mais tememos: a violência e a morte
Tem um peso. É uma idade de respeito, né? Você definitivamente não é mais jovem. Com 60 também não, mas aos 70 você entra de fato na categoria dos mais velhos. Sempre fui o mais novo por onde eu andei – o mais novo da classe, o mais novo entre os médicos. Agora sou sempre o mais velho [risos]. Mas não tenho problema com a idade. Tem problema quem pulou etapas, não realizou o que tinha que realizar. Eu fui vivendo o que tinha que viver e acho que fui ficando melhor. Não dá para ter saudade de quando se tinha 15 anos, dá? Eu não tenho saudade nem de quando eu tinha 50.
Um dia encontrei um ex-colega de escola que, no meio da conversa, perguntou minha idade. Quando eu falei 49, ele disse: “Xi, ano que vem, 50, é o começo da decadência”. Aquela frase ficou na minha cabeça. Eu estava me sentindo tão bem, tão produtivo. Para provar que não estava ficando velho, resolvi correr a maratona de Nova York. Me preparei e fiz a prova inteira. Aí comecei a correr todos os anos.
Sim. Quando você corre 42 quilômetros, se sente jovem. Fisicamente mesmo. O grande problema da idade é a decrepitude física, sentir que o corpo cria problemas, pressão alta, diabetes, o ritual dos comprimidos. Mas, se não tem isso, não há limitações. Claro, você não tem a virilidade de antes, mas também já não quer a vida sexual que teve quando jovem. Você entra num processo mais harmonioso, com uma visão mais abrangente. E começa a se concentrar no que é importante.
Sim, a última que corri foi em Berlim. Fiz em quatro horas e 12 minutos. Meu melhor tempo até hoje foi três horas e 38, em Nova York. O problema é que maratona exige tempo para treinar e isso eu não tenho.
Não. Me incomoda muito. Porque não sou autoridade nessa área. Leio os jornais, alguns trabalhos sobre violência, conheço um pouco da ciência básica da área, mas não tenho formação pra discutir em profundidade. Conversa comigo sobre câncer de mama: sei tudo o que está acontecendo, me sinto preparado para discutir. Sobre violência, não.
É, mas me incomoda. Quando o Luiz Schwarcz [da Companhia das Letras] decidiu lançar o Carandiru com tiragem de 10 mil exemplares, achei que ia ser um fracasso. Dias depois do lançamento, eu pego três jornais para ler no café da manhã e me vejo na primeira página dos três. Todos usando o livro para falar da Detenção. Aquilo me assustou. Eu só queria contar a história de um médico. Não queria representar o que não sou, uma pessoa que conhece cadeias.
A Casa de Detenção era um lugar curioso, uma craca encrustada na cidade de São Paulo. Você passava pela [avenida] Cruzeiro do Sul e via os homens atrás das grades, as pernas pra fora. Era algo muito forte e, ao mesmo tempo, era como se aquilo não existisse: quando o metrô parava na estação Carandiru, de frente para essas janelas, muita gente virava o rosto para o outro lado. Era uma história muito interessante pra contar. Minha ideia era fazer uma coluna policial em jornal, mas, à medida que reunia os textos, percebi que ninguém entenderia as histórias sem uma descrição detalhada daquele lugar. Aí vi que daria um livro.
Fiquei amigo de muitos dos agentes penitenciários da Detenção e, quando ela foi fechada, fizemos um pacto de nos reunirmos a cada três semanas, em algum bar, o que estamos cumprindo. Num desses encontros ouvi a história do Hulk, que conto no livro [o personagem tortura um preso em uma cela e, logo depois, salva a vida de outro, que tentava o suicídio]. Essa história caracteriza tanto a vida desses homens! A gente tende a classificar as pessoas em boas, más, bandidos, mocinhos, mas a verdade é que não é assim. Há uma zona intermediária que temos dificuldade de caracterizar. Passei a achar interessante a ideia de ter um livro mostrando o lado de cá daquela história que eu tinha contado 13 anos antes. Os homens de Carcereiros também estão presos, mas num semiaberto ao contrário: eles passam o dia na cadeia e, à noite, vão dormir em casa.
Quando existe uma facção criminosa que tem poder, os conflitos são inevitáveis. E acontecem uns surtos: alguém faz alguma coisa que passa do ponto suportável pelo outro lado e aí começa o mata-mata. Mas é difícil saber exatamente até que ponto as mortes fazem parte da guerra. Muitas vão parar nessa conta sem que se tenha certeza da ligação.
Os presos se organizaram pra evitar novos massacres. E as organizações ganharam tal força que passaram a mandar nos presídios. O crime organizado, a meu ver, é uma consequência darwiniana inevitável: prevalece o mais forte. A fase do crime desorganizado, quando os bandidos tinham nome – na minha infância eu ouvia falar de Sete Dedos, Promessinha, Meneghetti –, passou. Hoje é o crime desfigurado, impessoal, em que, quando um é eliminado, outro imediatamente toma seu lugar. Esse é o grande problema. Mas eu ainda acho o crime organizado... [faz uma pausa] É difícil dizer isso, mas é melhor do que o crime desorganizado.
Porque tem regras. O fim do crack e a diminuição dos homicídios e tentativas de fuga dentro do sistema prisional, por exemplo, se devem a essa disciplina imposta. Claro, é terrível que haja populações da cidade sob o comando deles. É uma ditadura. Mas fico pensando: será que não foi sempre assim, dois ou três bandidos criavam uma situação de tirania, num bairro inteiro, e a gente nem tomava conhecimento? A violência urbana é complexa. Ninguém explica com nenhum fator isolado, nem mesmo a pobreza. Não é ela, isoladamente, a razão da violência.
O problema mais sério do Brasil é a falta de acesso a planejamento familiar pelas mulheres pobres. É o maior tipo de violência que se comete contra a mulher brasileira. Nós, das classes média e alta, temos filhos quando queremos. E, se a gravidez é indesejada, paga-se por um aborto. Vamos ser francos, aborto é livre no Brasil, né? Agora, essas meninas da periferia têm o primeiro filho aos 13, 14 anos. Aos 16 estão grávidas de novo; aos 19, outra vez. Na cadeia feminina, quando vejo uma menina de 25 anos sem filhos, ou é infértil ou é gay. Do contrário, já tem dois, três, cinco filhos. São avós aos 30 anos. Então imagine a menina que engravida aos 14 anos, sem ajuda do pai da criança, e tem que trabalhar. Quem vai cuidar da criança? A solução: vender drogas.
Penitenciária feminina é isso. Se o código penal mudasse, se acabasse a história de droga ser ilegal, esvaziaria a penitenciária onde eu trabalho hoje. Lá você pergunta “qual seu artigo?” e a resposta de quase todas é “33” [porte de drogas]. Ou “35”, que é associação para o tráfico e gera as penas maiores, de oito, nove anos. Eu queria entender por que os juízes fazem essa diferenciação. Existe tráfico sem associação? Você compra de alguém e vende para alguém! Tem muita menina presa por levar droga pra dentro de cadeia em dia de visita. Lavrado o flagrante, ela já fica presa à espera do julgamento. Nem volta pra casa, as crianças ficaram sozinhas. Ela pega quatro anos de cadeia e vai cumprir, sei lá, um ano e tanto.
Claro, não é possível pegar uma menina que colocou droga dentro da vagina para levar pro namorado e prendê-la por anos! O que representa isso pro tráfico? E o que a sociedade ganha ao jogar essa menina na cadeia? Não estou dizendo que não haja traficantes, malandras. Mas muitas vezes é uma garota levada pela emoção, porque o namorado, o marido pediu. Aí ela vai presa e o cara arranja outra que faça a mesma coisa. Não era o caso de punir esse cara lá dentro? Ele poderia ficar um ano sem visita. Ela poderia ser proibida de entrar em cadeias. Seria mais eficaz e não criaríamos um problema social desse nível: crianças que vão ficar abandonadas, meninas que entram de bobeira e saem da cadeia conectadas com o crime. É o que nós causamos com essa imbecilidade. Essa questão tem que ser rediscutida no país.
Depende de todos nós. A discussão hoje é rasa, parece que só existem duas posições: ser a favor da repressão ou a favor da liberação. É quase como “você é contra ou a favor da droga?”. Há posições intermediárias. Este exemplo de Portugal, não é interessante? Criaram as Comissões de Dissuasão da Toxicodependência, há um trabalho de aproximação, de prevenção. Claro, a solução para um país de 10 milhões de habitantes não será a mesma para um de 200 milhões, mas temos que encontrar nosso caminho. Se um cara maior de idade, com dinheiro, vai a uma favela comprar droga, por que o lado de lá, que é o comerciante, não venderia?
Sim, é criar regra. Veja a questão do cigarro: hoje temos 15% de adultos fumantes, menos do que nos Estados Unidos. Por quê? Porque proibimos propaganda, fizemos campanhas mostrando que faz mal, que é dependência química. Não um charme, como se dizia. É dependência. Com as outras drogas vai ter que ser feita coisa parecida, específica para cada uma. O menino que fuma baseado na festinha não está na mesma situação do que fuma crack na sarjeta.
Eu acho que isso vai ser inevitável, mas é o preço a se pagar. Não é assim com o álcool? Milhões de pessoas que bebem, milhões que exageram na bebida e a sociedade segue em frente? Vamos criando uma cultura. Só porque a bebida é liberada vamos todos nos embebedar a qualquer hora do dia? Não. Será que a gente ia sair daqui e cheirar cocaína só por estar disponível?
Não, com a vida que levo não tenho condição de estar em nenhuma comissão [risos]. Mas é muito interessante o Fernando Henrique fazer esse trabalho. Um homem na idade dele poderia passar ao largo desse assunto. Poderia dar tantas desculpas. Acho admirável a coragem de propor uma discussão.
Ainda estudante experimentei maconha, mas não gosto da sensação de perda do controle. Mesmo álcool, toda vez que bebo um pouco a mais fico me sentindo mal, achando que fui prolixo, chato. Drogas mais pesadas, como cocaína, nunca experimentei. Na época da Detenção eu via tanta gente fumando crack que pensei: “Preciso experimentar, dar só uma tragada, para saber do que se trata”. Aí um traficante, que tinha conseguido parar com o crack, me disse: “Não faça isso que o senhor vai ficar viciado”. Tive curiosidade, mas não tive coragem. E hoje tenho muito menos.
Muitas. Ela ficou doente quando nasceu meu irmão mais novo e morreu quando ele tinha 2 anos e pouco. Teve uma doença autoimune e foi ficando cada vez mais fraca. Eu assisti à morte dela, em casa. Vi da porta do quarto o momento em que ela, que mal conseguia respirar, parou definitivamente. Mas também tenho ótimas recordações desse tempo. Jogava bola, vivia na rua. Eu era feliz e, ao contrário do Ataulfo Alves, eu sabia.
Era um homem muito forte. Minha mãe morreu aos 32 anos e ele, na mesma idade, ficou com três filhos pra criar. Tinha dois empregos: durante o dia era contador, depois tesoureiro, e das 19 à meia-noite tinha um trabalho na polícia, na seção de arquivos. Só descansava no domingo, quando cuidava das plantas, cozinhava. E sempre dizia que os filhos tinham que ir pra universidade. Num bairro operário como era o Brás, logo depois da Segunda Guerra Mundial, os meninos de 14 anos iam trabalhar nas fábricas. Mas ele dizia que os filhos dele não seriam assim.
Sim, aos 80 anos.
Eu tive uma adolescência legal, mas houve uma fase dura, dos 10 aos 15, mais ou menos, quando eu ainda era muito dependente da estrutura familiar. Meu pai se casou seis anos depois que minha mãe morreu e a vida com a minha madrasta não foi tranquila. Mas aí, com 15 anos, eu comecei a sair de casa, ia pra casa dos primos e só voltava pro almoço de domingo, porque meu pai fazia questão.
Ah, é um problema. Entrei na faculdade e já comecei a ficar careca. Meu pai, meus tios, a família paterna toda ficou careca. Quando você é moleque enchem muito com isso, o tempo inteiro fazem piadinha. Mas, quando comecei a dar aula, com 18 anos, e todos os alunos eram mais velhos que eu, foi bom ir perdendo cabelo. Ganhei um ar mais sério, professoral. Acho que me ajudou [risos].
Não tenho ideia. Tenho um tio médico, o primeiro que conseguiu estudar na família, mas não tem muita relação. Não sei por que, mas me lembro que desde pequenininho dizia que ia ser médico.
Eu entrei na faculdade em 1962, o Di Genio tinha entrado em 1960. Éramos bons alunos e o dono de um cursinho da época, o 9 de Julho, nos convidou para dar aulas de física. Eu precisava trabalhar, então eu fazia faculdade durante o dia e tinha esse emprego à noite. A gente foi muito bem nas aulas. Começamos a ter alunos particulares, ganhávamos bem. No terceiro ano, 1965, tivemos a ideia: como os cursinhos encerravam as aulas em dezembro e o vestibular era em fevereiro, inventamos um curso de férias. Alugamos uma sala na praça Carlos Gomes, na Liberdade, e publicamos um anúncio no Jornal da Tarde chamando para as inscrições. Era preciso dar um nome pro curso e eu sugeri Objetivo. O Di Genio adorou.
Porque era objetivo mesmo [risos]! Era pra quem estava prestes a fazer vestibular. Alugamos um mimeógrafo e passamos uma noite na casa dele rodando o material. No dia seguinte fui pra praça Carlos Gomes e vi a fila dando volta no quarteirão. Contei por alto umas 250 pessoas, só que a classe comportava 50. Liguei pro Di Genio, desesperado. Ele nem hesitou: “Matricula todo mundo”.
Alugamos mais salas, chamamos mais colegas para dar as aulas. Acho que chegamos a 800 alunos. O dono do 9 de Julho propôs que a gente desse esse curso lá com ele. Só que a gente estava ganhando dez vezes mais. Uns 5 mil não sei o que, sei lá qual era a moeda vigente, mas hoje seriam uns 50 mil para cada um, um dinheirão. Saímos os dois do outro cursinho.
Ah, nem chegou a ser uma sociedade... o Di Genio estava se formando naquele ano e decidiu continuar tocando o negócio. Mas eu queria ser médico. Fiquei com uma participação por um tempo e com esse dinheiro consegui começar na medicina. Tive mais tempo para estudar e me preparar, sem precisar ficar pulando de um lugar para outro como médico, que era o caminho natural para um iniciante.
Sempre gostei de escrever. Muito antes de publicar eu já reunia escritos. Isso virou uma parte importantíssima da minha vida. Quando chega o momento em que você acha que um texto ficou bom, melhor do que você imaginava que era capaz de fazer, vem uma sensação de felicidade! É essa a palavra. Felicidade, em geral, é uma coisa que você obtém quando existem condições: gente querida por perto, uma relação afetiva, um filho, um ambiente, uma paisagem... Mas a escrita também pode trazer isso. E é uma felicidade que você obtém sozinho, com seu computador, às vezes virado pra uma parede branca.
Dez anos atrás o Fantástico tinha comprado a série da BBC sobre o corpo humano e eles acharam que tinha que ter um médico brasileiro na versão daqui. Aí o Geneton Moraes Neto [editor do programa] me procurou. Avisei que só faria se eu pudesse criar o texto. E eles toparam. Um ano depois, o Ali Kamel [hoje diretor-geral de jornalismo e esporte da emissora] leu um artigo meu na Folha, sobre lavar as mãos, essa coisa básica. Ele me ligou e falou: “Você precisa voltar, essas coisas precisam ser ditas na televisão”. Eu voltei. Imagina um médico interessado em saúde pública ganhar espaço num programa que está há não sei quantos anos no ar. E ainda dizerem “faz o que você quiser”. Eu fui, né?
Se eu não estivesse fazendo clínica, minha vida seria muito mais tranquila. Eu poderia escrever mais, fazer melhor a televisão... Um amigo meu diz que não tem cabimento dedicar tanto tempo a atender poucas pessoas quando posso atingir milhões que jamais teriam acesso a essas informações. Ele tem razão. Mas eu não consigo me imaginar não examinando doentes, não pegando nas pessoas pra descobrir o que elas têm, acordar de manhã e não ter nenhum doente pra ver. Na medicina, os anos trazem uma visão incrível. O cara tá contando a história e você já entende o que ele tem. Então eu chego nessa fase, de maturidade total, e vou deixar de fazer?
Mudou muito. Quando a gente é jovem, não encara isso com tanta profundidade. Pra começar, quando você é mais jovem, encara a morte como um fracasso como médico. Então você foge um pouco desse tema, desse momento de olhar nos olhos e dizer “olha, a situação está realmente grave, nenhum tratamento vai te tirar dessa condição e o que posso fazer é te dar conforto”.
Não. É difícil até hoje. Mas você passa a considerar que, se a morte é inevitável, a sua função não é curar os doentes, mas ajudá-los a passar por essa fase tão dura. Como faz, que medicamento pode usar, quando é hora de tratar, quando é hora de não fazer nada. A arte da medicina, sua grandiosidade, está em conciliar o conhecimento técnico com as necessidades da pessoa – que pode inclusive decidir que não quer tomar um remédio que tem efeitos ruins. Há pouco tempo, uma moça recém-casada me disse que o tamoxifeno [droga usada no tratamento de câncer de mama] estava acabando com a vida sexual dela. E não iria mais tomar. Fico pensando: eu também não ia querer. Vai aumentar o risco? Vai. Mas viver é arriscado mesmo.
Engraçado, não foi medo. [Faz uma pausa] Eu olhava meus exames – não era eu quem decidia o tratamento, claro, mas eu queria ver os números – e tinha certeza de que iria morrer. À medida que enfraquecia, fui ficando tão desligado de tudo... A morte, quando chega devagar, te prepara pro final. Você não luta contra o que é inexorável. Não há possibilidade de dizer “não, eu não quero”. E a ligação com as pessoas se esgarça. Tenho duas filhas com as quais possuo uma ligação fortíssima, mas ali percebi que eu não tinha mais nada a ver com elas. Você acaba do jeito que veio ao mundo: sozinho.
Em nenhum momento me passou pela cabeça. Buscar conforto espiritual em seres divinos ou paraísos transcendentais é tão absurdo como pedir presente para o Papai Noel. Para mim, a crença religiosa e a existência de outra vida não fazem sentido.
Acho muito melhor o mundo de hoje. Pagamos um preço pelo progresso – não dá pra criar filho solto na rua, e é uma pena –, mas já houve coisas tão piores. Violência política, ditadura, por exemplo. Uma perseguição dirigida a universitários, imagine! Vivemos uma situação incrivelmente melhor hoje, inclusive na medicina. O atendimento pode ser de baixa qualidade, mas ele existe para a população. Não existia na minha infância. Em alguns setores, ele é de altíssimo padrão. Para a aids, por exemplo. Ou o programa de vacinações brasileiro, o maior programa de vacinação gratuita do mundo. Ou o programa de transplantes.
Antes da existência de uma vacina de alta eficácia, considero pensamento mágico imaginar que a epidemia de aids chegue ao fim em qualquer país. Veja o caso da sífilis, doença curável com duas injeções de penicilina, antibiótico de baixíssimo custo. Está aí até hoje. Combater doença sexualmente transmissível não é fácil. Agora, acho que o Brasil, que inovou na distribuição gratuita de antivirais no tratamento de grandes massas de pessoas infectadas pelo HIV, talvez seja um dos países com mais condições de reduzir ao mínimo o número de infectados.
Acho uma besteira. Se nem se sabe qual o poder de cada planta, o que vão roubar? Até conhecer as propriedades de uma única espécie, é um trabalho imenso. Nos Estados Unidos quem faz isso é o governo, as empresas não têm interesse em investir. No Brasil, essa politização espantou todos os cientistas que pretendiam estudar aqui. Porque eles não querem ser acusados. É gente que trabalha sério, tem a vida dedicada à pesquisa, não dá pra confundir com bandido. Nem os botânicos vêm mais. Só que a botânica amazônica ficou conhecida por causa de grandes botânicos de fora que estiveram aqui. Essa postura politizada estragou tudo.
Deixei de mergulhar. Como eu quase me afoguei quando era criança – um primo mais velho me tirou do riacho quando eu estava quase morrendo –, fiquei com um problema com água, facilmente me assusto. Tanto que eu entro no mar só até o joelho.
Não. Eu tinha terminado meu primeiro casamento, que durou 11 anos. E o homem na separação fica numa situação que, em geral, é pouco discutida. Você se separa da mulher e com isso se separa dos seus filhos. Eu tinha uma relação tão próxima com as meninas, de trocar, dividir. Foi muito duro ser afastado. Eu chorava na cama à noite, sozinho. Pensava: “Preciso sair disso, encontrar alguma coisa que me faça bem”. Aí um dia vi uma notícia sobre um curso de teatro que estava começando no MAM [Museu de Arte Moderna] e fui até lá. Cheguei, a porta estava fechada. Toquei a campainha e não apareceu ninguém. Toquei de novo e nada, então fui voltando pro carro. Aí um zelador do prédio me chamou. Expliquei que eu estava procurando o curso das 8 horas e ele falou: “Ah, já começou”. Era às 7 horas, o jornal estava errado. Me despedi e fui embora, pela segunda vez. Aí ele me chamou de novo e falou: “Espera, vou falar com a professora”.
Sim, ele apareceu de volta com ela, falando: “Olha, começou às 7 horas, mas faltou uma pessoa, então tem uma vaga. Entra, senta e não fala nada que eles estão fazendo um exercício”. Diz ela que eu me apaixonei ali, porque nunca uma mulher tinha me dito “entra e cala a boca!” [risos]. Foram três meses de curso, semanal. Ela deu as quatro primeiras aulas e, quando terminou essa parte dela, eu logo a convidei pra comer um sanduíche. Ela também estava separada, com dois filhos. Foi uma coisa que deu certo de cara. Já faz 31 anos e a vida só melhorou desde que estamos juntos.
Ela fala o que ela quer, quem sou eu pra me meter? A gente tende a caracterizar a sexualidade em padrões muito rígidos. Muita gente só aceita a heterossexualidade. Outros, mais civilizados, aceitam a homossexualidade também. E a verdade é que em matéria de sexo há uma gama tão grande de variações. Você tem extremos e no meio deles cabe tudo, não é? Acho que a Regina quis dizer a mesma coisa nessa entrevista: que ela reconhece nela um outro lado, um lado que se atrai pelo feminino. Bom, eu vivo com ela há 31 anos, sem interrupções. Pode ser que um dia eu descubra que ela tem uma amante, mas até hoje não vi nada... Sei lá, dizem que o marido é o último a saber [risos].
Baú da Trip: Drauzio Varella
Gabriel RInaldi
Drauzio Varella
Cinco anos antes do lançamento do seu best seller, Estação Carandiru, Drauzio Varella já era referência na medicina nacional. Pioneiro no tratamento de doentes de aids no país, ele acompanhou de perto o primeiro caso da doença registrado no Brasil, em 1981, e foi por muitos anos uma das maiores autoridades brasileiras no assunto.
Em 1994, quando era médico dos hospitais paulistas Emílio Ribas e Sírio-Libanês, ele passou pelo estúdio da Trip como convidado especial do Trip FM para falar de prevenção e tratamento do HIV. Uma época em que a informação sobre o assunto ainda era rasa e pouco divulgada nos grandes meios de comunicação do país.
Na ocasião, Dr. Drauzio veio derrubar os antigos mitos ligados à doença, como aquela velha conversa de que a aids era uma doença de homossexuais.
"Dizer que o homem tem menos chance de pegar aids em uma relação heterossexual do que a mulher pode até ser verdade, mas isso não está confirmado cientificamente. O que está demonstrado é que homens podem sim pegar aids de mulheres", explicou. Na África, por exemplo, 50% dos casos de contaminação vem de cada um dos sexos. Agora, começar a discutir probabilidades não tem o menor valor do ponto de vista prático. Porque se esse 1 na probabilidade de 1 para 1820 for você, você pegou uma doença que é potencialmente mortal."
"Para ajudar na luta contra a aids, a primeira coisa é se proteger. E para isso, é fundamental usar camisinha"
"Os primeiros casos que eu vi de aids, entre 81 e 84, eram todos de homossexuais. Lá para 85 começou a aparecer aids no pessoal que toma drogas na veia. A primeira mulher heterossexual que não usava drogas intravenosas que eu vi infectada foi lá por 1988. Mas hoje, para cada 10 diagnósticos novos de aids, seis são mulheres. E 90% delas tem entre 15 e 30 anos de idade", explicou. "As mulheres vão representar a nova onda das pessoas infectadas pelo vírus da aids", concluiu.
O entrevistado das Páginas Negras do nosso especial Segurança falou também sobre as expectativas da época para futuros tratamentos da doença.
"O problema fundamental da aids é a ignorância. É achar que não vai acontecer com você"
"Eu acredito que vacina para quem já está infectado é uma coisa que surgirá rapidamente", previu. "Agora, uma vacina preventiva, dessas que possam ser aplicadas em pessoas com idade pré-sexual para protegê-las de um contato futuro com o vírus, é uma coisa que eu não vejo no horizonte."
"O problema fundamental da aids é a ignorância. É achar que não vai acontecer com você. O risco está naquela pessoa que você olha e fala: 'esse cara está limpo, então tudo bem'. Para ajudar na luta contra a AIDS, a primeira coisa é se proteger. E para isso, é fundamental usar camisinha. A geração que está chegando em idade sexual agora vai ter que aprender isso a duras penas."
Não deixe de ler a excelente entrevista do Dr. Drauzio para a Trip #218 clicando aqui.
Vai lá: http://revistatrip.uol.com.br/revista/218/paginas-negras/drauzio-varella
Rui Branquinho
Rui Branquinho é um dos principais nomes da propaganda brasileira. Ao longo de sua carreira de 22 anos já conquistou os mais importantes prêmios nacionais e internacionais da publicidade. De família portuguesa e nascido em Moçambique, na África, ele se formou em publicidade pela ESPM, começou a carreira em 1991 e consolidou seu nome na publicidade brasileira ao longo de sete anos de trabalho ao lado de Washington Olivetto na W/Brasil. Em janeiro de 2011 ele assumiu o posto de vice-presidente de criação da Young & Rubicam, uma das maiores agências do país, e desde então já conquistou com sua equipe 13 Leões de Cannes e o título de Profissional de Propaganda do ano passado, honraria concedida pela editora Referência. O Trip FM desta semana é com esse homem forte da propaganda nacional, que, depois de mais de 10 anos trabalhando como uma espécie de consultor da presidência do São Paulo Futebol Clube, assumiu no ano passado o cargo de diretor de Marketing do clube. Um fato tão comemorado pelos torcedores são-paulinos quanto a contratação do meia Paulo Henrique Ganso. O Trip FM vai ao ar na grande São Paulo às sextas às 20h, com reprise às terças às 23h pela Rádio Eldorado Brasil 3000, 107,3MHz
Thiago Mundano
Itaú Cultural Thiago Mundano Thiago Mundano não é mágico, ilusionista ou oculista, mas transformou o que era invisível em obra de arte e, nesse processo, resgatou a autoestima e o orgulho dos principais agentes responsáveis pela reciclagem no Brasil. Paulistano nascido no Brooklin, ele se interessou pelo grafitti ainda criança e, antes de fazer o chamado “grafitti art”, pichou e grafitou muito muro por aí. Seu trabalho começou a ganhar destaque quando resolveu incorporar aos coloridos personagens que pintava, frases de efeito que incomodam e que, principalmente, convidam à reflexão. Em 2007, em uma de suas andanças por São Paulo, entrou em contato com o universo dos catadores de material reciclável e suas carroças, trabalhadores que são responsáveis por coletar mais de 80% de todo material que é reciclado na cidade. Desde então ele resolveu mobilizar a sua arte, literalmente, e passou a imprimi-la não só nos muros, mas também nas carroças Enquanto seu recado pega carona, sua arte devolve ao catador a dignidade de quem desenvolve um trabalho honesto e de extrema importância para a cidade. “Os carroceiros tem vários perfis. Aqui em São Paulo esse grupo é composto por pessoas que vieram de outros estados e que não conseguiram empregos tradicionais. A maioria está na faixa dos 50 anos e são desempregados que vêem na coleta uma das únicas oportunidade que tem para trabalhar na cidade. Mas também tem aquele que é chefe de família, tem casa própria e que faz isso há 20 anos porque ele é mesmo um funcionário autônomo que ganha mais dinheiro do que muita gente em empregos tradicionais”, comentou Thiago. “Os 174 catadores que eu já pintei são muito agradecidos. Eles dizem que deixar as carroças mais atrativas realmente favorece a interação deles com as pessoas na rua e que assim eles conseguem mais trabalho e mais material de doação. É uma troca, porque eu aprendi muito com eles. Eles me ensinaram um novo jeito de ver a cidade.” "Também tem aquele [catador] que é chefe de família, tem casa própria e que faz isso há 20 anos porque ele é mesmo um funcionário autônomo que ganha mais dinheiro do que muita gente em empregos tradicionais” Mundano também falou sobre as dificuldades de viver como artista no Brasil, mas fez questão de salientar que há trabalho para artistas no país, mesmo considerando o mercado artístico brasileiro "muito elitista". “Apesar de no Brasil arte ser muito elitizada, com quase 90% da população dizendo que nunca visitou um museu, é possível sim viver como artista no país. Eu consigo vender minhas obras, dou palestras e faço curadorias de projetos. É isso que me mantém engajado no meu próprio trabalho. É daí que vem meu sustento”, explicou, dizendo que apesar de ter vindo de uma família de classe média-alta, não é nenhum administrador de herança. “Eu tive boas oportunidades na vida por vir de uma família de classe média-alta, mas isso só se reflete em quem é o Thiago. O Mundano veio muito depois.” O Trip FM vai ao ar na grande São Paulo às sextas às 20h, com reprise às terças às 23h pela Rádio Eldorado Brasil 3000, 107,3MHz
Ele é o convidado desta semana no Trip FM. Na entrevista, Mundano explicou quem são os catadores de lixo, como eles recebem a ideia do projeto do ativista e como é viver de arte em um mercado tão apertado como o do Brasil.
Luan Santana
Alê Potas
Luan Santana
Luan Santana é um dos maiores fenômenos da música brasileira, um dos artistas que mais vendem discos e DVDs no mundo e o tamanho do seu sucesso é inversamente proporcional ao tamanho da sua carreira. Sul-Mato-Grossense de Campo Grande ele começou a cantar e a impressionar seu público ainda criancinha, mas subiu ao palco pra valer mesmo em 2007, há menos de 6 anos.
No ano seguinte gravou seu primeiro disco, o Tô de Cara, e na carona do single “Meteoro” ele alçou vôo definitivo em direção ao sucesso. De lá para cá foram milhões de discos vendidos, diversos prêmios e uma média de nada menos que 25 apresentações mensais. Mais impressionante que os números de sua carreira é a naturalidade e o jeito leve com que ele lida com o sucesso e com o assédio das fãs enlouquecidas no melhor estilo beatlemania.
"As meninas jogam mesmo lingerie em mim. Eu às vezes até tropeço neles de tanto sutiã que tem no palco"
O convidado desta semana no Trip FM é com Luan Rafael Domingos Santana, que aos 22 anos está dando uma nova cara à música sertaneja e que, dizem por aí, já tem uma coleção de roupas íntimas femininas maior que a do Wando. Na entrevista, ele fala sobre a carreira, o sertanejo universitário e contou se a perseguição feminina atrapalha ou não o seu namoro.
"As meninas jogam mesmo lingerie em mim. Eu às vezes até tropeço neles de tanto sutiã que tem no palco", ri Luan. "Mas minha namorada não liga. Ela acha muito legal esse carinho das fãs comigo. Às vezes a gente está andando em algum lugar e umas fãs chegam para pedir pra tirar uma foto e ela mesma pega a câmera. Ela entende perfeitamente."
Filho de uma família de classe média, ele teve uma adolescência bem normal no Mato Grosso do Sul e afirmou que a fama não mudou seu grupo de amigos nem sua relação com o dinheiro.
"Eu sou eu mesmo. Sou assim. Graças a Deus consigo controlar tudo que eu ganho e não sou de sair fazendo besteira com dinheiro"
"Na escola eu era bagunceiro pra caramba. Mas eu era desses bagunceiros que, quando a professora olha, finge que tá quietinho. E eu ia bem nas provas. Aí meus amigos ficavam bravos comigo porque eu bagunçava e mesmo assim tirava nota boa. Mas eu estudava bastante", comentou.
"Eu sou eu mesmo. Sou assim. Graças a Deus consigo controlar tudo que eu ganho e não sou de sair fazendo besteira com dinheiro. Graças à educação que eu recebi dos meus pais e da minha família eu sou bem tranquilo. Eu comprei um Porsche Boxter Spider conversível, que era um sonho que eu tive desde que eu era moleque. Mas foi só isso."
O Trip FM vai ao ar na grande São Paulo às sextas às 20h, com reprise às terças às 23h pela Rádio Eldorado Brasil 3000, 107,3MHz
Maurício Farias
Divulgação
Maurício Farias
Maurício Farias é responsável por algumas das mais importantes produções do humor nacional, dirige alguns dos atores mais brilhantes da atualidade, mas é bem provável que você não o reconheça pelo nome ou pela fisionomia. Carioca, ele é membro do clã Farias, tradicional e importante família na história do cinema brasileiro.
Com uma longa e frutífera carreira dentro da Rede Globo, ele dirigiu dezenas de novelas, miniséries e seriados, entre eles as novelas O Amor Está no Ar, Pecado Capital e Esplendor, as minisséries Hilda Furacão e Pastores da Noite e os seriados A Grande Família, Junto e Misturado e, mais recentemente, Tapas e Beijos. No cinema, como diretor, ele estreou com o longa O Coronel e o Lobisomem, que foi seguido pelos filmes A Grande Família e Verônica.
"Pra você ter uma ideia, eu comecei a fazer novela em 1994 com A Viagem. Daí até 2005, que foi quando eu dirigi minha última novela, eu não consegui tirar férias nem uma vez"
O papo desta semana no Trip FM é com ele, que está lançando seu quarto longa, o Vai Que Dá Certo, filme que traz no elenco Bruno Mazzeo, Lúcio Mauro Filho, Fábio Porchat, Gregório Duvivier, Natália Lage e mais um monte de gente bacana. Na entrevista, ele falou sobre cinema nacional, humor, o casamento com a atriz Andréa Beltrão e as dificuldades de se trabalhar com novelas no Brasil.
"Dirigir novelas é uma atividade extenuante. É um trabalho intenso. Você trabalha o tempo inteiro voltado pra isso, de segunda a sábado, e só às vezes consegue descansar no domingo. Pra você ter uma ideia, eu comecei a fazer novela em 1994 com A Viagem. Daí até 2005, que foi quando eu dirigi minha última novela, eu não consegui tirar férias nem uma vez", comentou o diretor. "Mas tem uma coisa maravilhosa de se trabalhar em novelas. Ali tudo é feito para que você possa produzir muito. É como treino de fundamentos em time de futebol profissiona. Você reune uma galera muito boa que executa esses fundamentos como ninguém. Então é uma coisa maravilhosa."
Farias falou também sobre sua longa experiência na série A Grande Família, onde teve a oportunidade de dirigir sua esposa, Andréa Beltrão, que interpretava a cabelereira Marilda.
"Não costumamos ter problemas no set. Imagino que, como minha relação profissional com a Andréa se estabeleceu antes de começarmos a namorar, eu não vejo dificuldade nenhuma em dirigi-la. Não lido com ela de forma diferente do que faço com a Marieta Severo, por exemplo. Eu nunca tive um frisson de recebê-la no set. Sempre foi muito tranquilo", explicou.
O Trip FM vai ao ar na grande São Paulo às sextas às 20h, com reprise às terças às 23h pela Rádio Eldorado Brasil 3000, 107,3MHz
Andrea Lavezzaro
Ela descobriu na faculdade a paixão pela fotografia. E pouco tempo depois descobriu sua vocação. A brasileira Andrea Lavezzaro, hoje com 30 anos, deixou a faculdade de moda para trás para perseguir seu sonho profissional. Começou a clicar ensaios sensuais em 2005 e hoje é a única fotógrafa brasileira no time do site Suicide Girls, especializado em ensaios de garotas tatuadas, com piercings e cabelos coloridos. Hoje residindo na Europa, ela divide seu tempo entre Berlim e Londres. “Eu queria mesmo era morar na Alemanha e ser paga na Inglaterra”, brinca. “Mas não sinto falta do Brasil. Já estou bem acostumada com a Europa e adoro morar lá. Cada vez que eu volto para São Paulo eu me espanto com como a cidade é cara. Berlim é mais barato até do que São Bernardo do Campo, que é onde minha família mora.” Quando Berlim era apenas um sonho, uma amiga que sabia sobre seu interesse em fotografia pediu para ser fotografada em um ensaio sensual, ideia de cara rejeitada por Andrea. “Eu não queria fazer as fotos de jeito nenhum. Achava que ensaios sensuais eram uma forma de pornografia e não me sentia confortável. Tanto é que nos primeiros que eu fiz, me esforçava ao máximo para não mostrar quase nada das meninas. Foi com o tempo e com os resultados positivos que eu fui entendendo como fazer fotos legais de meninas nuas.” Hoje certa de que essa é sua grande paixão na fotografia ela passou seis meses do ano passado mergulhada em seu maior projeto até hoje: seu primeiro livro. Lançado de forma independente em 12/12/12, a primeira edição da compilação de fotos que leva seu nome é o pequeno orgulho da fotógrafa, que pode ser comprado em seu site oficial. Os efeitos O impacto do trabalho com dezenas de modelos e não-modelos pode ser sentido também na visão geral que a fotógrafa tem sobre as mulheres. Após vencer a vergonha de fazer os primeiros ensaios sensuais, Andrea aprendeu muito sobre o corpo feminino e sobre si mesma. Foi como uma liberação que só apareceu na sua vida graças à imensa variedade de meninas que já posaram perante as lentes de suas câmeras. “Fotografar mulheres me fez mudar totalmente a forma como eu pensava corpos femininos e ajudou a me fazer aceitar melhor o meu próprio corpo" “Fotografar mulheres me fez mudar totalmente a forma como eu pensava corpos femininos e ajudou a me fazer aceitar melhor o meu próprio corpo”, alertou. “Quando você tem contato com vários corpos você vê bem a diferença entre eles e como é divertida essa variedade. Cada uma tem o seu jeito e não existe esse ideal de corpo perfeito. Foi essencial para mim.” Essa libertação permitiu a Andrea cruzar a linha de seu obturador e posar do outro lado da lente como modelo para o mesmo Suicide Girls. No ensaio onde ela se revelou também uma bela modelo, porém, ninguém teve o gostinho de dar a ela um pouco de seu próprio remédio. “Cheguei a fazer um ensaio para o Suicide Girls como modelo em 2008, só que não deixei ninguém me fotografar”, ela ri, apreciando a ironia da fotógrafa de nus que não quer ser clicada nua. “Eu quis entender melhor como as meninas passam por isso mas nunca quis que ninguém me fotografasse. Tenho a vaidade de aparecer nua, mas me conheço e quero fazer minhas próprias fotos. Vez ou outra eu faço alguns autoretratos meus e gosto bastante deles também.” Vai lá: www.lavezzaro.com
www.suicidegirls.com/girls/Lavezzaro/photography
Jogo de cintura
Latin Stock/Getty Images/Leonel Martinez/Jam Media
O mexicano Edgar Vivar no papel de senhor Barriga; e após a cirurgia que o fez perder 80 quilos
Um perdeu a metade do peso; o outro cultiva com gosto o barrigão que o fez famoso. Edgar Vivar, o Senhor Barriga do seriado Chaves, e Genival Lacerda, o rei das letras de duplo sentido, falam de uma particularidade em comum: a pança
O dono da Vila
por: Lia Hama
Reconhecer Edgar Vivar é duro até para quem não perdia um episódio de Chaves, um dos seriados mais assistidos da história da TV brasileira. O ator mexicano que fazia o Senhor Barriga, dono da vila onde moravam seu Madruga, dona Florinda e Quico, perdeu metade de seu tamanho. De 160 quilos, passou para 80, após uma cirurgia de redução de estômago que salvou sua vida há cinco anos. Aos 69, não perde o humor. De olho no Brasil – estudou português e sonha fazer novela aqui –, trouxe seu espetáculo Senhor Barriga é jovem ainda!, misto de musical e stand-up comedy, a São Paulo e Porto Alegre no ano passado. E quer voltar este ano. Da Cidade do México, onde mora, Vivar falou à Trip.
Por que você fez a operação de redução de estômago?
Era uma questão de vida ou morte. Tive uma série de problemas de saúde em decorrência da obesidade. Sofri duas embolias pulmonares, fiquei internado na UTI quatro vezes e carreguei um tanque de oxigênio por quatro anos. Perdi 80 quilos e, como vocês podem ver, agora estou ótimo, participando de diversos projetos. Meu último trabalho foi uma comédia romântica chamada Me late chocolate, que acaba de estrear nos cinemas do México. Interpreto um simpático chofer que também se chama Edgar.
O que mudou depois da cirurgia? Você se sente mais bonito agora?
Bonito eu sempre fui [risos]! Mas com certeza me sinto mais saudável. Depois de encarar a morte de frente, procuro aproveitar a vida ao máximo, vivendo os dias intensamente.
Como é a sua dieta hoje?
Não sigo uma dieta especial e não sei dizer se sinto menos fome hoje. O que acontece é que agora eu tenho um estômago do tamanho de uma bola de golfe, ou seja, fico satisfeito muito rápido. Com isso, acabo comendo menos.
O público acha estranho ver você magro?
Tanto o senhor Barriga como o Nhonho, o filho dele, que também interpretei em Chaves, são muito queridos. Sua imagem permanece no imaginário dos fãs do seriado. Mas eles entendem que quem emagreceu foi o ator. Quando me encontram, reagem com o mesmo carinho e entusiasmo.
Divulgação
Genival Lacerda e a “barriga sexy”, marca registrada de suas performances
Barriga sexy
por: Pedro Henrique Araújo
Silvio Santos, quem diria, por pouco não encerra a carreira do então jovem cantor Genival Lacerda antes mesmo de ele estrear em seu programa dominical, em 1975. Mas o santo do calouro da Paraíba era forte: ele entrou no ar cantando “Severina Xique Xique” agarrado à barriga, como se ela fosse sua dama, e rendeu a plateia. O resto é história. Rei das letras de duplo sentido (“ele tá de olho na butique dela”, refrão de “Severina”, é apenas o mais conhecido), Lacerda virou personagem do imaginário popular brasileiro. Hoje, aos 81 anos e com 118 quilos, segue cultivando a pança com muita comida nordestina.
Quando a barriga virou um personagem em seus shows?
Em 1975, fui fazer o programa do Silvio Santos. Na hora de entrar, ele disse ao produtor: “Avise ao rapazinho que não dá pra ele vir porque estamos atrasados 12 minutos”. O produtor, que me conhecia, respondeu: “Olhe, esse rapazinho é Genival Lacerda, um showman. Ele é o primeiro sem segundo no estilo dele”. Aí eu entrei. Cantei “Severina”, “A filha de Mané Bento” e comecei a fazer aquela dança com a barriga. Eu não tava tão gordo naquele tempo, mas é como o palhaço de circo. O palhaço vai contando anedota. Se o público gosta, ele continua contando. Aí, mais na frente, ele conta de novo. Eu dei continuidade até hoje.
Como cultiva a forma física?
É só não fazer regime, que é a pior coisa do mundo. Meu filho João Lacerda diz que eu preciso ficar malfeito e cultivar a barriga até quando eu parar de cantar.
O que você come normalmente?
Como o que eu gosto. Feijão, cuscuz, arroz, galinha, torrada, pão, queijo de coalho, manteiga de gado. Tudo, menos o que acoste o colesterol, porque se acostar João não gosta. Tomo cuidado com o colesterol e a glicose, só isso.
Você pensa em emagrecer?
Isso [a barriga] não acaba mais, não, porque já virou um calo sexual. Todo mundo me conhece como “o homem da barriga sexy”.
É a barriga com mais história do Brasil?
É uma história grande. São quase 62 anos de carreira e 49 LPs gravados. Graças a Deus sou um ícone da música nordestina. Para contar, estou preparando um livro. Desde quando eu comecei em Campina Grande até hoje.
Surf redondo
James Scott Pellegrine tinha menos de 2 anos quando viu Waimea quebrar pela primeira vez. A história é engraçada, mas poderia ter sido trágica – um ritmo, aliás, que a vida de Jimbo (como o californiano é chamado) conhece bem. Os pais de Jimbo estavam no North Shore havaiano, em Oahu, para onde se mudaram quando o filho tinha uma semana. De repente, perderam Jimbo na praia. Era uma manhã do inverno de 1971, na qual ondas de 25 pés quebravam forte na baía. Jimbo foi andando até a beira do mar, entrou e sentou. Ali, ficou brincando, sem saber que estava no famoso e temido “shore break” de Waimea e que uma parede de água vinha firme em sua direção. O salva-vidas, sem acreditar no que via, teve tempo de descer de sua torre e irromper para tirar Jimbo dali segundos antes de a onda estourar. Alheio ao frenesi, o pequeno Jimbo gargalhava. O episódio foi contado por ele para a reportagem da Trip, que o alcançou por telefone em sua atual residência: uma casa com deque, piscina e vista para as colinas de Bali. “Meu pai adora contar sobre esse dia”, disse. Para a comunidade de surf em Bali, Jimbo é um mito – ainda que ele garanta ter muitos desafetos. As histórias a seu respeito são fartas: foi um adolescente rebelde, passou dois aniversários internado em centros de reabilitação na Califórnia antes dos 18, era aposta certa para morrer antes dos 20… Mas se recusou a cumprir o destino que traçaram para ele. La vida loca Aos 3 anos, ganhou do pai, também surfista, a primeira boogie board. Aos 6, a primeira prancha de surf. Aos 7 realizou as primeiras manobras e, aos 11, venceu o primeiro campeonato em pé na prancha. “Eu surfava todos os dias sem parar”, diz. “Meu pai era amigo de Mike Doyle, que fazia pranchas para mim. Essa era a minha turma.” Hoje morando na Indonésia, a vida de Jimbo adquiriu contornos épicos para a comunidade do surf. Em Bali, Jimbo é mais que um nome: é um estado de espírito. Não apenas porque, mesmo com quase 200 quilos, faz sobre uma prancha manobras que pesos-leves não conseguem realizar, mas especialmente por viver cercado de mulheres, surfistas alucinados e baladas. Quando falamos com ele pelo telefone, o barulho de vozes ao redor lembrava o de uma festa – eram dez da manhã de uma quinta-feira em Bali. Por lá, todos sabem que a rotina dos que ficam hospedados em sua casa é surfar em Desert Point até o dia terminar, voltar para a casa dele e festejar até o sol e as ondas retornarem na manhã seguinte. Apesar de viver la vida loca, Jimbo é um empresário bem-sucedido. Morando em Bali desde 2003, para onde foi a fim de passar apenas um mês surfando, encontrou espaço vendendo pranchas e alugando casas de veraneio. Surfistas que chegam ali a fim de teto, ondas e diversão sempre perguntam por Jimbo. “Vi que não queria mais sair quando surfei, em menos de um mês, as melhores ondas da minha vida”, diz. Apesar da performance matadora, Jimbo atrai muito olhar torto: "o mundo está cheio de babacas" Em pranchas feitas sob encomenda e cujos tamanhos variam entre 7’0 e 7’6, com 24 de largura e 3-3/4 de borda, ele realiza manobras de deixar de boca aberta quem vê. Mesmo assim, conta que é bastante comum ser alvo de olhares tortos quando pega sua prancha para cair no mar. “O mundo tá cheio de babacas. O que vou fazer se tem gente que prefere odiar? E, de qualquer jeito, eu surfo melhor do que a maioria deles”, diz, rindo, mas deixando escapar uma ponta de frustração quando fala do assunto. “Não entendo por que algumas pessoas se esforçam tanto para falar de como as outras deveriam ser e viver. Esse tipo de gente me deixa maluco. Tento me acalmar e apenas me esforçar para ser um cara melhor para mim e para as pessoas que realmente importam.” Em Bali, Jimbo também está lançando uma marca de bebidas energéticas e um álbum no qual toca músicas de sua autoria (chamado Get fucked it rocks). Só que a fama de bad boy não o abandona. Ele contou ao site balibelly.tv que, quando foi contratado para representar uma empresa americana de pranchas em Bali, a marca criou uma cartilha de código de conduta: o documento proibia Jimbo de suar incontrolavelmente durante reuniões (Jimbo sua muito), de ameaçar de morte outros funcionários (ele diz que foi pra cima de um colega de trabalho apenas uma vez) e de se entregar a baladas até de manhã com surfistas do time em temporada de eventos. Mas há histórias que talvez contribuam ainda mais para criar o mito. A do raio é uma delas. Jimbo estava com amigos tocando guitarra em seu deque quando um raio o atingiu em cheio, jogando seus 180 quilos em direção à janela, e a guitarra, toda arrebentada, mais longe ainda. Ao abrir os olhos, estava, em suas palavras, “fritando”, cercado de gente e dos gritos da namorada: “Dude, you got hit by a lightning!” (“Cara, você foi atingido por um raio!”). Outro episódio pitoresco é o da balada em que ele estourou um dos joelhos dançando. Foram necessários quatro caras para arrastá-lo até seu automóvel, e, enquanto atravessavam a rua, um carro desgovernado veio na direção deles. Os amigos tiveram tempo de vazar, mas deixaram Jimbo no meio do asfalto. Sem conseguir andar, foi atropelado e jogado contra a parede. Quando o motorista, bêbado, viu que ele estava bem, saiu gritando: “Ei, seu maluco, você amassou meu carro”. Ainda que haja muitas outras, vamos contar só mais uma: Jimbo estava com amigos surfando em Middles Beach, em Porto Rico, quando um tubarão apareceu. Todos, menos Jimbo, conseguiram pegar uma onda e sair dali. Da areia, gritavam para que ele também viesse. Apavorado, Jimbo pegou uma onda de uns 8 pés, caiu formidavelmente, a prancha quebrou em três pedaços, seu calção foi arrancado e ele saiu da água completamente nu. Não é difícil perceber que Jimbo é um cara intenso, apaixonado e que não tem medo de excessos. Quando pergunto o que seria da vida dele sem o surf, diz que seria um fracasso. “Obviamente, gosto muito de comer”, emenda, “mas também de pranchas novas, boas ondas, amigos sinceros e uma mulher que me ame. Adoraria, aliás, se ela fosse brasileira”, completa, maroto. Peter Frieden O havaiano Shawn Briley em ação em Lombok, Indonésia Por Tulio Brandão O surf é farto de magrelos, que se equilibram sobre cambitos em pranchas tão finas que mais parecem folhas. Na água, quando surge um garoto mais pesado, um tiquinho mais encorpado que os outros, ganha logo o apelido de Gordo. Felipe Cesarano, um dos melhores surfistas de ondas pesadas do mundo, recebeu de presente a alcunha logo depois da primeira prancha. “Eu estava fora de forma, a galera não perdoou.” Renato Tincoc/FLUIR O brasileiro Felipe Cesarano, que nunca perdeu o apelido de Gordo Gordo treinou, emagreceu e transformou a gordura em massa muscular. Hoje, aos 26 anos, usa o talento, o espírito “go for it” e a estrutura física avantajada para se jogar em montanhas d’água capazes de fazer qualquer baleia afinar, como o maior teahupoo da história, que os iniciados chamaram de Code Red. “Por eu ter um peso e a estatura baixa, meu centro de equilíbrio é bom. Eu aguento o tranco legal. Mesmo com todas as vacas que eu tomo, nunca tive uma lesão grave surfando.” Da banha, só restou o apelido. O cara é, hoje, Nascia o slogan “Go, Gordo!”, que virou campanha de marketing e estampou camisas e outros produtos de sua patrocinadora, a Rusty. Deu tão certo que, em abril, a empresa espera lançar o filme Go Gordo 2, com novas aventuras do hoje quase magro Felipe Cesarano. O australiano Michael Lowe, que esteve entre os melhores do mundo por 12 anos, é outro surfista que um dia foi confundido com um gordo. Apesar da força e do fôlego invejáveis, foi estereotipado por ter um porte físico mais atarracado, pesado. Isso jamais significou mais que um número um pouco maior na balança. De 1996 a 2008, teve uma carreira respeitável, com três vitórias em campeonatos de elite (França, Fiji, Austrália). Destacava-se em mares de todos os tamanhos, especialmente os tubulares. Na final de Snapper Rocks, na Austrália, em 2004, o surfista virou ninja. Num mar com pouco mais de 1 metro, usou seus 83 quilos distribuídos em 1,75 metro para vencer o tricampeão mundial Andy Irons, no auge da forma. Seu adversário ostentava, antes do vício em drogas que o levou à morte, as medidas do surfista perfeito: 77 quilos num esqueleto de 1,83 metro. A conquista é definitiva, sobretudo por Mick ser goofy: desde então, nenhum outro surfista que manobra de costas para aquela onda venceu em Snapper Rocks. Os companheiros mais magros diziam que Mick tinha “kegs on legs” (numa tradução livre, pernas de barril). O que Mick tinha, na verdade, era uma feliz combinação de força e talento. A Trip o encontrou trabalhando no DRB Group, empresa de Sydney, Autrália, que gerencia carreiras de atletas. Velho amante de cervejas e esportes australianos, ele virou um gerente de sucesso. Por e-mail, gentilmente, declinou da entrevista, porque jamais considerou suas medidas uma questão importante. O havaiano Shawn Briley, de longe o mais volumoso da lista de grandes surfistas competitivos da história, também não parecia se importar com seu peso. Nos anos 90, ele ditava os limites nos mares mais assombrosos de Pipeline, Sunset e até mesmo no temido quebra-coco de Waimea. Em 95, apesar de jamais ter seguido o circuito profissional, venceu, com o conhecido apetite, um evento apenas para convidados especialistas em tubo, o Tavarua Tube Classic, em Fiji. O peso-pesado evocava, com suas performances extremas, os polinésios mais corajosos, para quem o espírito forte era mais importante que o corpo sarado. “Não há leis no surf. Posso ser tão rápido, radical e criativo quanto quiser. Não há limite de velocidade, sinais de trânsito e ninguém te diz o que fazer”, disse Briley, certa vez, numa entrevista. Mantinha o princípio fora da água, para desespero de seus pares. Gostava de correr e arrebentou-se várias vezes em acidentes de moto ou carro. O havaiano sossegou com a família e passou uma década longe dos holofotes até ser encontrado pela mídia dentro d’água, em 2011. Estava mais gordo, mas ainda se encaixava nos canudos de Pipeline, Uluwatu e outros picos. Briley finalmente subverteu a lógica do magro. Provou que, no surf, documento é o talento, e não a barriga.Radicado há dez anos em Bali, o californiano Jimbo Pellegrine desafia os preconceitos (e a física) tratando as ondas como poucos surfistas conseguem fazer — mesmo carregando 180 quilos no corpo
A insustentável leveza dos surfistas encorpados
o sexto do mundo no circuito mundial de ondas grandes. “Gordo” virou marca registrada. Ou mais que isso: certo dia, num swell pesado em Puerto Escondido, no México, o americano Greg Long, ao perceber o brasileiro bem posicionado para uma bomba de 20 pés, gritou: “Go!”.
Léo Jaime
Thelma Vilas Boas Com 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, e equilibrados com 18 anos de psicanálise, o ex-roqueiro irreverente Leo Jaime amargou o ostracismo e uma doença séria, mas manteve a verve e se reinventou para muitos lados. Aqui, o ator de Malhação e expert autodidata em relacionamento homem-mulher fala de fome e de fartura, e dispara: “preconceito estético é uma coisa nazista” No show de Leo Jaime, quando a corda de um instrumento arrebenta, o cantor aproveita a substituição para animar o povo, e não se poupa da própria ironia: “Barriga tanquinho é para os fracos! Eu tenho uma lavadora turbo automática com 12 programas!”. Ou então: “Aqui não tem nada P, é tudo GG”. Perto de completar 53 anos (em abril), o cantor nascido em Goiânia é um raro caso de talento polivalente e reconhecido: apresentador, ator, cronista, roteirista, comentarista esportivo, bailarino (quem já o viu no palco, em musicais, sabe), consultor de redes sociais (já deu até palestra no Senado ensinando a lidar com “opiniões contrárias na internet”), pitaqueiro especializado em relacionamento homem-mulher e craque em conversas fiadas em geral. Tudo isso em 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, mas equilibrados com 18 anos de terapia (“dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã; cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista”). A adiposidade que se concentra no abdome, no pescoço e nas bochechas é consequência de uma doença rara, o pan- hipopituitarismo. A glândula pituitária de Leo não produz hormônios, e a ausência de um deles, o GH (sigla para growth hormone, hormônio do crescimento), leva ao acúmulo de gordura intravisceral, que, além de perigosa para a saúde, tem um efeito estético execrado pela sociedade atual: a barriga. Isso não o impede de fazer bonito ao lado da lindona Fernanda Lima no programa Amor & sexo, da Globo, nem de se destacar entre jovens sarados no elenco da novela teen Malhação, da mesma emissora, vivendo um roqueiro veterano. No canal a cabo GNT, comanda o reality-show Detox do amor, e há pouquíssimo tempo, iluminava as mesas do Saia justa com frases como “quem repara demais na celulite das moças acaba preferindo bunda de rapaz”. Nos anos 80, magro, Leo Jaime posava de sunga no encarte de seu primeiro LP (o impagavalmente intitulado Phodas “C”) e aparecia de cueca em videoclipes. Dominava rádios FM com até cinco músicas no top 10, namorava cobiçadas modelos, lotava ginásios por todo o Brasil e atuava em filmes pop como As sete vampiras e Rock estrela. Nada mau para o garoto que saiu de casa cedo e até hoje reluta em falar sobre a família na qual diz ter nascido “acidentalmente”. “Sou o terceiro filho de um casal muito jovem, meus pais tinham 21 anos. Não tive uma infância feliz, não tive adolescência feliz”, resume, com desconforto. Leo deixou Brasília aos 17 anos, com “uma mão na frente e outra atrás” (como bem define seu sucesso “O pobre”), disposto a ser ator de teatro. O plano inicial era se juntar à trupe de Zé Celso Martinez Correa, em São Paulo, mas uma oportunidade na companhia do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928-1992) o fixou no Rio de Janeiro. Em meio a empregos variados, como vendedor de roupas em loja, barman e iluminador de teatro, conheceu Cazuza quando nenhum dos dois nem sequer sonhava em viver de música – “não era uma opção real”. Enquanto se dividia entre duas bandas – Nota Vermelha e João Penca e seus Miquinhos Amestrados –, esnobou uma vaga no Barão Vermelho e indicou o amigo. Gravada por Eduardo Dusek, junto com os Miquinhos Amestrados, uma de suas canções, “Rock da cachorra” – aquela do refrão “troque seu cachorro por uma criança pobre” –, foi importante para consolidar a nova geração do rock projetada com “Você não soube me amar”, da Blitz. “Os livros sobre a música desse período se esqueceram dessa história”, observa. Na virada para os anos 90, em crise com a própria imagem de “roqueiro emergente”, tentou uma mudança para um lado mais adulto e suave. Acabou amargando longo ostracismo. “Chega o momento em que vem o dilema: se faço uma coisa nova, estou abandonando meu público e perdendo a essência; se sigo a mesma linha, sou um artista esgotado, que só se repete. Ou seja: se quiserem que você esteja errado, você vai estar errado, não importa o que faça”, lembra. Quando, em 1992, começou a sofrer as consequências da doença, já tinha razoável bagagem como colunista. No jornal O Globo, havia escrito sobre música, futebol e TV. Em revistas como Capricho e Desfile, aventurou-se por temas de comportamento. O clique, porém, veio com um convite para assinar textos em O Dia. “Escreve sobre relacionamento, porque tem pouco homem que fala disso e as mulheres querem saber o que os homens pensam”, pediu-lhe o editor Joaquim Ferreira dos Santos. “Foi essa sacada dele que me fez perceber todo um caminho profissional”, credita Leo. Seu "Rock da cachorra", de 1981, ajudou a calibrar o espírito irreverente da primeira safra do rock carioca Em 2000, voltou a conhecer o sucesso nos palcos, dançando e cantando no musical Vitor ou Vitoria. “Por causa da peça, decidi morar em São Paulo. Como ator, não poderia imaginar nada melhor: um ano em cartaz ao lado de Marília Pera, com a melhor bilheteria possível. Imaginei: ‘Pronto, vou ficar aqui. Vai ter muito trabalho pra mim’. E não teve.” Veio um contrato com a Abril Music, que evaporou junto com o resto do champanhe das taças da festa de assinatura. “O disco não saiu e eu acabei ‘pendurado na brocha’, morando numa cidade onde eu não tinha sequer banda. Mas São Paulo foi fundamental para a retomada da minha carreira musical. Voltei às origens: fui tocar em bar.” Foram três anos de boas experiências no Na Mata Café, no Itaim, com a retomada de contato com colegas da geração do rock e um encontro que deu em casamento. Há oito anos, não larga da psicóloga Daniela Lux, de cujo ventre saiu David, 5 anos e meio, a concretização do sonho maior do cantor. “Ser pai é minha verdadeira vocação.” Os três moram hoje no Rio, no Jardim Botânico, sem babá, com energias concentradas na vida familiar. A rotina de gravações não permite que Leo viaje muito, mas ele tem rodado o Brasil com o show Festa, centrado em canções dançantes, dele e de outros autores. Depois da recente parceria com Rita Lee (“Tchau”, feita para Malhação) e da faixa nova, “Fui”, incluída no recente relançamento de Todo amor (seu disco de intérprete, de 1995), ele planeja lançar, finalmente, o primeiro DVD em 30 anos de carreira. Depois, outro show, intimista, abrindo a gaveta de inéditas, e um novo projeto de talk show. “Eu tenho muito para comemorar.” Comentou-se nas redes sociais que os participantes do Big Brother, muito jovens, não conheciam suas músicas. Talvez não soubessem cantar uma ou outra, mas, no geral, conheciam. Quem viu toda a apresentação percebeu isso. De todo modo, tem um gap mesmo entre quem me conhecia antes e o público de agora. Fiquei muito tempo sem gravar, passei muito tempo sem sequer mostrar música para as pessoas da indústria. Parecia que eu não teria outra oportunidade. Você lançou um disco como intérprete em 1995, depois de cinco anos na geladeira de uma gravadora. E só voltou a lançar disco solo em 2008. A atuação multimídia de certa forma compensava as frustrações com a carreira musical? Quando fui trabalhar em novela, em 1988, depois de muitos hits de rádio, e, depois, quando comecei a escrever no jornal O Globo, entenderam que eu estava dando as costas para o sucesso. Mas eu só estava sendo fiel a mim mesmo. Estava com vontade de escrever e atuar, de ser a pessoa que sou hoje. Precisava de um ano sabático, para pensar para onde ir, o que seria impossível naquela maratona de shows, filmes etc. Estou em paz com o que fiz antes. Mas naquela hora o lugar que tinham pra mim, de roqueiro irreverente, era um sapato apertado para o cara que eu tinha me tornado. Eu precisava fazer outras coisas. "A mensagem era esta: 'Não queremos sua música, você está gordo, decadente, acima do peso..." Foi uma crise de maturidade? É. Fiz 30 anos e pensei: “O que vou fazer agora?”. E calhou de vir o Plano Collor, justamente quando eu tinha entrado para a gravadora Warner, em 1990. Muitos discos foram adiados, carreiras deixadas em suspenso. Lá tinha Gilberto Gil, Ultraje, Kid Abelha, Titãs, Barão Vermelho. E, no último lugar da fila, eu. O tempo foi passando. Depois de dois anos, você deixa até de ser assunto. Quando consegui, depois de longa pendenga jurídica, lançar o Todo amor, em 1995, o cenário parecia favorável de novo. Conseguimos encaixar música na novela das oito, mas não repercutiu, não rolou. Até que eu fosse gravar outro disco, passaram-se 13 anos. Nesse tempo, muita gente teve oportunidade de gravar. Eu não. A certa altura me cansei de ligar pras pessoas e não ser atendido. Tive de tocar minha vida pro lado em que o vento estava batendo. Permaneci fazendo shows, trabalhando em musicais, escrevendo pra TV. E isso foi solidificando uma trajetória que hoje parece muito clara. Minha atividade é múltipla. Em que momento ficou claro que a sua imagem estava prejudicando sua carreira de cantor? Basicamente a mensagem que me passavam era esta: “Não queremos ouvir a sua música porque você está gordo, está decadente, está acima do peso”. É curioso porque falavam isso do Elvis também, né? Ele cantando como nunca e as pessoas dizendo: “Ah, está decadente”. Já com outros artistas que apareceram gordinhos desde o começo, como o Ed Motta, ninguém via problema. Não estou me comparando a ninguém. Mas o Elvis, mesmo brilhante, tinha essa cobrança de ser galã. E ele morreu novo, com 42 anos. O fato é que fazer aniversário não faz bem pra saúde. E o fã gosta de gente que morre jovem. Se você quiser satisfazer mesmo o seu fã-clube, morre logo! [Risos.] Aos 27, é a hora perfeita pra morrer. Nego adora! [Risos.] Como percebeu a mudança do seu corpo? Ficou deprimido ao ver que estava engordando? Eu tenho um problema de saúde chamado pan-hipopituitarismo. Ou seja, eu não tenho hipófise, glândula que produz hormônios importantíssimos. Por alguma razão, fiquei assim; acho que foi por causa de um tombo de moto na adolescência. Você leva uma pancada na cabeça, ela incha e comprime a hipófise, que depois pode voltar ao normal. Ou não. É o meu caso. Não tenho produção hormonal, preciso tomar todos – todos! – os hormônios para o resto da vida. Fiquei muitos anos tomando corticoide, e sem tomar GH, o hormônio que faz com que você não acumule essa gordura intra-abdominal, que forma a barriga. Malhei muito a vida toda, tenho boa musculatura, só tenho dobra de gordura no pescoço, no rosto e no tronco. Meu percentual de gordura não é alto, tenho muita massa magra. Meu colesterol é baixo, a glicose é baixa, tenho saúde boa. Mas tenho aparência de uma pessoa muito mais gorda do que sou. Como você controla o peso? Eu tenho 1,77 metro. Teria que pesar, para ficar magrinho, 105 quilos. Precisaria perder uns 15. Tenho controle, nutricionista, acompanho tudo. Mas é muito difícil baixar tudo isso, porque precisaria malhar todo dia. E malhar pesado. Não tenho tempo nem toda a disposição necessária. Tinha vontade de fazer o “Medida certa” [quadro do Fantástico que desafia celebridades a perder peso seguindo um programa de exercícios e dieta], adorei quando cogitaram meu nome por lá. Queria que as pessoas vissem o que eu faço. No transport, preciso trabalhar no índice máximo de dificuldade, o maior peso, para conseguir a frequência cardíaca desejável. Se você pegar um professor lá, forte, não sei se vai conseguir fazer com essa carga. Eu gostaria de ficar magro, inclusive para garantir o futuro do meu filho. Sei que o preço que eu pago profissionalmente é enorme. Mas não sei se seria mais fácil se eu estivesse magro. "Falavam do Elvis também. Mesmo brilhante, tinha a cobrança de ser galã" Você tira a camisa sem embaraço, em qualquer lugar? Normalmente. Eu sou um homem feliz, bem-sucedido afetivamente. Sou mais feliz hoje do que em outros momentos da vida, em que estava magrinho. Não se pode ter tudo, né? [Risos.] Tem corpo de tudo quanto é jeito. Você olha o cara, acha gordo, e ele é um campeão olímpico. E, cá pra nós, as mulheres que agradam o mundo da moda não são as preferidas da maioria dos homens. E você também gosta de mulher cheinha? Olha... Eu gosto é da minha mulher! [Risos.] Mas a sua mulher é magrinha? Ela é mignon [risos]. Você já teve relacionamento com alguma mulher acima do peso? Já... Já. Não tenho problema nenhum com isso. Aí a pessoa é mais importante do que a altura, os centímetros, os quilos etc. A forma como ela lida com isso também influencia. Quantos casamentos você já teve? Sou casado apenas agora. No papel, só agora. Cheguei a morar junto, mas não era casamento. Quantos foram? Olha, não gosto de fazer auê da minha vida íntima, nem sou casado com alguém do interesse geral. Minha mulher é psicóloga, Daniela Lux Jaime. Ela clinica e está fazendo formação em Lacan. Qual é a sua bagagem em psicoterapia? No total, fiz 18 anos. Dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã. Cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista. Você buscou as outras porque ficou faltando algo depois dos dez anos de Freud? Fui pra terapia corporal, análise bioenergética, da linha do Lowen [Alexander Lowen, 1910-1992, psicanalista americano, discípulo do austríaco Wilhelm Reich], quando estava começando a sentir o efeito da doença. Minha terapeuta disse uma coisa fundamental: “Seu corpo é que está fazendo mal para sua cabeça, não o contrário. Você está bem, centrado, positivo; tem algo de errado é no seu corpo”. A sacação resultou no meu diagnóstico. Aí, quando ia me casar e queria ser pai – acho que essa é minha verdadeira vocação –, fui fazer terapia para me preparar. Como você e sua mulher se conheceram? É engraçada essa história. E um tanto reveladora sobre a questão física não ser importante. O lado pessoal se impõe sobre os atributos físicos. Na clínica de um amigo, em São Paulo, fiz tratamento com uma fisioterapeuta e fui com a cara dela instantaneamente. Um dia, estou lá no bar e vejo aquela moça se aproximando, com meu amigo. “Tô achando você estranha”, eu disse. E ela: “Já sei, você deve estar achando que sou minha irmã gêmea” [risos]. Não sabia que a fisioterapeuta tinha irmã gêmea. Mas instantaneamente bateu. Você cita a paternidade como questão fundamental na sua vida, algo para o qual você fez questão de se preparar. Como é sua rotina como pai do David? Eu levo a sério esse negócio de ser pai. Não tenho nenhum parente na cidade, é tudo com a gente mesmo, eu e minha mulher. Meu filho nunca teve babá. Hoje o David foi parar na minha cama no meio da noite. Acordei cedo para levá-lo para a escola, ele está começando o pré 2. Buscá-lo é tarefa minha também. Temos uma rotina chamada “programa de meninos”. Jardim Botânico, cinema, teatro. Só os dois. Dá uma intimidade, um laço apertado. Nos primeiros 45 dias, só eu dei banho nele. É meio tenso, tem até mãe que amarela, mas aprendi logo. Agora estou ensinando o David a tocar violão. Como tenho que tomar hormônio todo dia, ele fica me olhando aplicar a injeção e pediu pra aprender. Já aprendeu, aliás. Ele é calmo, não se assusta com sangue. Se tiver interesse por música ou medicina, tá lindo. Não faz diferença pra mim. Você não gosta de falar muito da sua infância e adolescência. Já citou em entrevistas que seu pai não era muito presente. Na música “Já foi papai”, você diz: “Pai, de você eu só quero grana/ e não está no meu programa/ deixar de ser quem eu sou/ Pai, anote o número da conta do meu banco/ e deixe lá a mixaria/ que é o que você tem pra dar (...)/ Pai , suas ideias são uma delícia/ e gosto delas tanto quanto amo a gripe e a polícia”. Não era uma música para a pessoa. Era para a entidade, até porque... [Pausa.] Eu nunca usei minha vida pessoal como elemento dos meus trabalhos. Porque, quando você tem uma história dura, de sacrifício, pode parecer que você está se fazendo de vítima. Posso falar que escolhi sair de casa cedo, escolhi uma carreira e uma vida com riscos. Torço para meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado. Durante muito tempo, vi as dificuldades com muito mais clareza do que as possibilidades. Depois de ter reconhecimento, de fazer sucesso no Brasil inteiro, como é que eu fico 18 anos sem lançar um disco de inéditas? É uma dificuldade enorme lidar com isso! Fazer uma música pra quê? Ninguém vai ouvir, ninguém quer. Até que apareceu a internet e eu entendi que não era bem assim. Aí, fiz a minha estrada. Na TV, e também como cronista, você acaba sendo um especialista em relacionamentos. Em sua trajetória pessoal, o que acha que lhe dá autoridade para falar do assunto? Eu não aconselho, debato. Não sei nada, apenas dou meu pitaco. Se a sua visão faz pensar, é o suficiente. Vou citar uma frase que disse outro dia no Amor & sexo: “Pau duro não é obrigação, é merecimento”. É o início de uma reflexão. A mulher pode se questionar: “Você acha que, só de tirar a roupa, o cara já tem que ficar de pau duro? Já para você se excitar, ele precisa se dedicar?”. Para o homem, vale pensar: “Você é uma máquina? Tirou a roupa, tem que se excitar ou há algum sentimento envolvido também?”. Gosto do assunto. Sempre tive muitas mulheres, e falo isso no sentido mais amplo e menos cafajeste. Levo muito a sério a amizade com as mulheres. Se eu estiver numa roda com 39 mulheres, fico à vontade. Com 39 homens, não sei. O Clube do Bolinha nunca me interessou muito. No da Luluzinha, eu sempre quis dar uma espiada pra ver o que estava rolando. Mas, no fundo, a mistura é melhor: se tiver uma mulher no meio, a roda dos homens melhora. E, se tiver alguém gay, melhora ainda mais. "Torço para o meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado" Você conheceu o Cazuza muito antes de os dois ficarem famosos. Tinha ideia de que ele poderia se tornar a grande voz poética da sua geração? Há outros grandes dessa época – Júlio Barroso, Renato Russo. Mas é indubitável que o Cazuza é grande. Quando a gente estava sem saber o que fazer da vida, ele pensava em ser ator. Escrevíamos, um mostrava coisas pro outro. Eu achava que seria um poeta como os da geração mimeógrafo, Nuvem Cigana, Chacal. A música não era uma opção real nem pra mim, que já fazia canções. Quando os caras do Barão me chamaram pro ensaio deles, eu cantava em duas bandas, Miquinhos e Nota Vermelha. Fui e pensei: Cazuza! Ele não imaginava que ia fazer parte de uma banda, nem gostava da ideia. Eu sabia que ele compunha, mas ele dizia que romperia relações se eu contasse pra alguém. Ficava incomodado com a possibilidade de trabalhar como cantor ou músico, porque o pai dele era diretor de gravadora. É famosa a história de que, jovem e sem grana, você de vez em quando ia à casa dele filar um almoço. Cazuza brincava, dizendo para a empregada: “Dá comida aí pra esse pobre”. Como você encarava esses tempos de dureza? Até onde isso o marcou? Eu não gostava de recorrer a isso, ficava muito envergonhado. Não ter o que comer – passar alguns dias sem um pedaço de pão em casa – é sobretudo humilhante. Dá uma sensação que vai além do físico. Quando fiz “Rock da cachorra” [do refrão “Troque seu cachorro por uma criança pobre”], eu estava tratando desse sentimento. Por trás da fome há um desconforto ainda maior pelo desamparo. A falta de afeto é o mais triste. Demorei bastante até conseguir as coisas na música. Eu estava na gênese da Blitz também: a Fernanda Abreu era minha amiga e eu a chamei para fazer backings no Nota Vermelha, que durou um verão e que a gente montou pra tocar no bar do pessoal da Casseta Popular [Emoções Baratas]. A Blitz tinha saxofone, era outra proposta, sem coral feminino. Mas, depois de verem a Fernanda, mudou e acabou dando supercerto. Por um tempo, a gente morou junto, eu, a Fernanda e o Luís Stein, com quem ela foi casada por quase 30 anos, em um apartamento no Cosme Velho [zona sul do Rio de Janeiro], sem elevador e sem telefone. Eu vim de Brasília com 17, 18 anos, sozinho. Trabalhava com o que dava. Fazia produção de show, operava canhão de luz, era contrarregra, produtor, vendedor de roupa em loja, barman. Eu não imaginava que fazer música fosse profissão, fonte de renda. Como eu já fazia teatro, primeiro em Goiânia, depois em Brasília, imaginava que esse pudesse ser meu caminho. Então, foi o teatro, e não a música, que definiu sua ida para o Rio de Janeiro? Vim parar na cidade assim: estava saindo de Brasília para morar em São Paulo e trabalhar no Oficina, do José Celso Martinez Correa. Passei antes no Rio para visitar uns amigos. Fui num ensaio da Teatro do Movimento, companhia de dança e teatro do Klauss Vianna [coreógrafo mineiro, 1928-1992]. Um dos atores não ia poder fazer o espetáculo, aí me chamaram e eu topei. Deu o maior pé: o Yan Michalski, crítico de teatro dos melhores, ficou impressionadíssimo com a minha estreia. Acabei convidado para entrar na companhia. Eu paguei um preço enorme pra começar. Mesmo quando eu já estava com música tocando em rádio, nem sequer tinha uma guitarra própria. O fato de eu não ter um suporte econômico me deixou em situação complicada. Toda vez que sentava numa mesa para negociar, e os caras do outro lado sentiam que eu precisava mais da grana, pegavam mais pesado. Mas eu andei tanto que não consigo ver minha história como uma trajetória que não seja de muito sucesso. Agora, é luz e sombra, né? Uma hora todo mundo gosta das coisas que você fala; na outra, você diz as mesmas coisas e está tudo errado. Eu conheço os dois lados do caminho. Então, quando começaram a vir essas histórias por causa da minha aparência, eu de certa forma já estava habituado. Sempre nadei contra a correnteza. Não que eu concordasse. Eu fico puto até hoje. O preconceito estético é uma coisa nazista. Mas consegui ultrapassar isso. Você ficou vermelho quando Monique Evans foi ao Amor & sexo e lembrou que um certo Leo Jaime, que ela namorou nos anos 80, lhe proporcionou o primeiro orgasmo, já aos 30 anos. Como isso pôde acontecer com um ator que por pouco não fez parte do grupo do Zé Celso? Ela falou de um jeito muito educado. Mas, de qualquer forma, fico meio... [Risos.] É um pouco embaraçoso. Sou tímido. Falar da minha vida íntima me deixa constrangido. Mas cantando diante de 15 mil pessoas me sinto tão à vontade quanto no banheiro da minha casa. Um amigo me falou: “Você gosta de se meter em roubada, até na pelada, quer ser centroavante, arruma sempre responsabilidade”. É o meu jeito: escolher o desafio maior. Tenho enraizada em mim a certeza de que sempre pode dar certo. Sempre pode melhorar. Coordenação Geral Adriana Verani Produção Editorial Mário Bernardo da Mata Produção de Moda Helena Luko Make & Hair Jésus Lopes Assistente de Produção Gabriela Michelini
Tony Bellotto
Felipe Chiri
Tony Bellotto
Tony Bellotto é fundador e guitarrista de uma das mais importantes bandas do Brasil, os Titãs, e há 20 anos ele se divide entre a criação de riffs e acordes de guitarra e a produção literária. Depois de comemorar os 30 anos do grupo no ano passado, este ano ele lança seu oitavo livro, Machu Picchu, pela editora Companhia das Letras.
Pai da Nina, do João e do Antônio e o marido da Malu Mader, o galã dos Titãs, Antônio Carlos Liberalli Bellotto é espécie de cruzamento entre Jimi Hendrix e Ernest Hemingway. Ele ainda apresenta no canal Futura o programa Afiando a Língua, onde encarna uma espécie de Professor Pasquale de jaqueta de couro.
Na entrevista ele falou sobre a vida em família, seu envolvimento com a literatura, sobre o programa de TV que apresenta no canal educacional e sobre os 30 anos da banda pioneira do rock paulista.
"Claro que rock não é esporte, mas é legal você manter a forma"
"O segredo da longevidade dos Titãs é justamente essa motivação que sentimos para sair e gravar coisas novas. É claro que a gente não vai ensaiar "Bichos Escrotos" ou "Polícia", que a gente já toca há mais de 25 anos", brincou o guitarrista. "O que mantém a gente vivo é olhar pra frente e ter o barato, sem Viagra, com o nosso trabalho novo. Ainda temos o mesmo gás que tínhamos em 1982 quando tocávamos na Caos Brasilis."
Tony falou também sobre uma declaração que deu anos antes, quando afirmou que ficava deprimido ao ver roqueiros barrigudos. Como o tema da Trip deste mês é Barriga, a questão não poderia passar em branco na entrevista.
"Eu não tenho preconceito com quem tem barriga", ele ri. "Tenho 52 anos e meu ideal de grande roqueiro é o Mick Jagger. O cara tem 70 anos e tá magrinho, com uma vitalidade incrível e cantando pra cacete. Eu admiro essa dedicação. Claro que rock não é esporte, mas é legal você manter a forma. É deprimente ver aquele cara que tá sem fôlego no palco. E a exceção é o Ozzy Osbourne, que é charmoso mesmo desse jeito."
"Estar do lado da Malu já é 80% do meu segredo de beleza"
Continuando no clima descontraído, Bellotto falou sobre o posto de galã oficial dos Titãs, que ocupa desde o início dos anos 80.
"Estar do lado da Malu [Mader, sua esposa] já é 80% do meu segredo de beleza. Sempre achei que essa vida de estrada e de show é cansativa. Então eu sempre fiz exercício, mesmo quando eu era doidão. Tento equilibrar minha alimentação também, mas sempre seu exagero. Hoje rola essa patrulha contra quem é gordo, que eu acho um absurdo. Cada um faz o que quer da vida."
90 anos lendários
Arquivo pessoal Jack O'neill Em 2010, a Trip abriu espaço em suas páginas para contar a história de um homem que mudou sozinho toda a trajetória do surf. Mais do que isso, que mudou para sempre também a natação marítima, o mergulho de águas profundas, a pesca submarina e a perfuração de petróleo em plataformas marítimas, tudo isso graças aos trajes de neoprene para surf, sua maior invenção. Recentemente, o pioneiro Jack O'Neill completou 90 anos ainda na ativa na produção tecnológica de trajes aquáticos e à frente de seu império, a marca de material esportivo O'Neill. Na ocasião, nosso publisher Paulo Lima sentou com o mitológico surfista e empresário na Califórnia para uma conversa que rendeu uma excelente entrevista sobre surf, negócios e inovação. Tem uma história boa sobre como você tentou entender o funcionamento do plástico para manter a temperatura do corpo... Você provavelmente faz parte de uma das primeiras gerações de surfistas daqui da Califórnia, certo? Qual foi a coisa mais importante que você aprendeu com o oceano? Depois de todos esses anos trabalhando na O'Neill com grande sucesso, quais lições você tirou da vida como um homem de negócios? Veja abaixo a entrevista em vídeo Vai lá: http://revistatrip.uol.com.br/revista/192/reportagens/terra-de-cego.html
"Eu estava testando diferentes maneiras de se manter aquecido. Foi uma época, no fim dos anos 40, em que havia um monte de lojas de suprimentos de guerra. E essas lojas tinham os descartes da indústria da guerra. Então fui a uma dessas lojas e descobri o que eles usavam para se manter aquecido na zona de combate. Era uma espécie de lençol de borracha por cima de uma coisa como uma lã... e funcionava muito bem. Mas eles nunca aperfeiçoaram o produto no sentido de fechá-lo depois que você entrava naquilo. Então na água era um problema.
Não, não, havia gente surfando no Havaí já nos idos de 1800. E esses caras também foram os primeiros a surfar na Califórnia. Tinha também um irlandês que provavelmente fazia isso naquela época, mais para o sul.
Nossa, eu tirei tanto do oceano, aprendi tanto com ele. Meus filhos, os filhos deles e outras crianças também. Nós já levamos perto de 60 mil crianças nesse projeto.
Penso que tive boas oportunidades, o timing foi perfeito. No norte da Califórnia, a temperatura do mar é muito baixa. Era um lugar natural para o desenvolvimento desse tipo de produto. E tivemos a exclusividade na manufatura das roupas de borracha por um bom tempo, isso nos deu tempo para nos aperfeiçoarmos. As pessoas riam das roupas no começo, mas agora usam no mundo todo.
Lúcio Mauro Filho
Reprodução/TV Globo
Lúcio Mauro Filho
Lúcio Mauro Filho é um dos principais cômicos da sua geração. No cinema, por duas vezes ele já deu vida à um panda especialista em kung-fu. No teatro, ele vive, desde o ano passado, um leão medroso. Mas foi na televisão, na pele de um adolescente bem desencanado, que ele conquistou o público brasileiro.
Filho do grande, Lucio Mauro, ele começou sua carreira no teatro Tablado. Na televisão, estreou em 1994, na novela da Rede Globo A Viagem. Mas foi sua participação por cinco anos no programa Zorra Total que lhe rendeu o convite para interpretar o Tuco, o filho da Dona Nenê e do Seu Lineu, no seriado A Grande Família, personagem que ele interpreta há nada menos que 13 anos.
Atualmente o ator está no cinema com o filme Vai que Dá Certo, que estreou na semana passada, e no teatro Alfa de São Paulo com a peça O Mágico de Oz.
O Trip FM vai ao ar na grande São Paulo às sextas às 20h, com reprise às terças às 23h pela Rádio Eldorado Brasil 3000, 107,3MHz
Muito mais que uma onda
Dane Reynolds redefiniu o surf no século XXI. Unindo um revolucionário jogo aéreo a doses igualmente brutais e ambíguas de força, fluidez, abandono e espontaneidade sobre uma prancha, o californiano é hoje o surfista mais talentoso do mundo. Palavra do supercampeão Kelly Slater. O brilhantismo de Dane não se mede pelo número de manobras que traz em seu repertório ou pelo histórico no cenário competitivo. Sua grandeza está no conjunto da obra. Nas linhas que escolhe para desenhar paredes líquidas. Na agressividade crua com que destrói seções ou as sobrevoa. No estilo imprevisível que transborda radicalidade poética. Assistir a Dane surfar é como ver um artista em seu apogeu. É descobrir que a perfeição existe da maneira mais imperfeita e improvável possível. Em terra, ele é quieto e modesto, quase misterioso. Avesso aos holofotes, quando não tem para onde correr – em um campeonato ou grande evento – não esconde o desconforto. Não que seja inseguro: Dane simplesmente preferia estar em outro lugar. Suas entrevistas são sempre uma incógnita – às vezes, reveladoras, outras vezes, enigmáticas. Três anos atrás, no Havaí, perguntei se ele sonhava com o título mundial. Depois de uma longa pausa, respondeu: “Vamos surfar, parece que o mar melhorou”. E assim terminou a conversa: fomos para a água e nunca voltamos ao assunto. “Rankings e troféus significam pouco para mim. Quero aprender, quero fazer coisas, coisas com um propósito” Meses depois, tive a resposta: o sucessor natural de Slater anunciou que não almejava o mesmo destino. Tornar-se um dos maiores ícones do esporte em todo o mundo não era pra ele. Remando contra a maré, aos 26 anos de idade, Dane disse chega. A notícia que sacudiu o mundo do surf, pouco mais de um ano atrás, veio na forma de uma carta publicada em seu blog. Honesto e corajoso, seu texto “Declaration of Independence” (declaração de independência) explicava, em 1.600 palavras, por que ele decidiu largar as competições e seguir seu próprio caminho. Apesar de privada de letras maiúsculas e com pontuação duvidosa, a carta é articulada e reveladora. “venho sendo pressionado por várias pessoas e pela imprensa a escrever algo como um pronunciamento oficial sobre minha saída do circuito mundial. Minha arregada. Minha pirueta. (...) três marcas me apoiam e me permitem surfar todos os dias e viajar e comer e ter uma casa para morar. Em troca as represento de uma maneira positiva. (...) ao aceitar seu apoio eu assumo certa responsabilidade. Alguns pensam que essa responsabilidade é competir. É colocar uma lycra de competição e destruir meus adversários. Mesmo que seja através de um critério inconsistente e unidimensional onde o resultado raramente está ligado apenas à performance. Talvez esse seja o apelo. Eu não sei. Eu até gosto de competir. Mas será que acredito na competição? O suficiente para dedicar uma grande parte de minha vida para isso? (...) aventura acima da responsabilidade. Suicídio de carreira! Potencial desperdiçado. Talento jogado fora. Eu sei o que vão dizer. (...) mas rankings e troféus significam pouco para mim. Quero aprender, quero fazer coisas, coisas com um propósito, quero ser produtivo. Viajar. Novas experiências. Novas sensações. E, principalmente, explorar os limites do surf de alta performance. (...) este pode ser o fim de um candidato ao título mundial. Mas é também um recomeço.” Se por um lado sua inédita declaração de independência foi duramente criticada por parte da imprensa especializada – que o acusou de ser um preguiçoso hipster que só queria mamar nas tetas da indústria sem assumir sua responsabilidade de atleta –, por outro, Dane tornou-se herói instantâneo para milhares de fãs em todo o mundo. Afinal, não há nada mais atraente do que um rebelde sábio e desinteressado. Ao virar as costas para as competições, a fábrica de ídolos programados para vender bermudas, Dane virou o surfista dos surfistas. Um cara anti establishment. Anticomercialismo. Anti-status quo. Um herói do underground. Um surfista de verdade. Sua atitude genuína e indomável, unida a seu surf espontâneo e criativo, transformaram-no em um dos maiores ídolos que o surf já viu. E ele nunca venceu um campeonato. No fundo, Dane é apenas um homem de talento excepcional que preferiu conduzir a carreira de uma maneira diferente. E, se conseguiu que seus patrocinadores o apoiassem nessa empreitada, isso por si já é um feito que não anula o raciocínio que o levou a desistir das competições. Ao contrário: sua posição financeira privilegiada (especula-se que seu salário supere US$ 1 milhão por ano) lhe proporciona um escopo bem mais amplo de possibilidades. O que haveria de errado nisso? Atualmente, Dane abre uma trilha virgem para surfistas profissionais. Diferente de qualquer freesurfer pago para produzir fotos e vídeos, sem competir, ele não segue uma rotina frenética de eterno viajante. O freesurfer comum vive em busca da onda perfeita em paraísos longínquos e exóticos – sempre com a obrigação de retornar com conteúdo para seu patrocinador – e dificilmente passa mais de duas semanas no mesmo lugar. Dane repudiou tudo isso. Ele preza sua rotina tranquila na Califórnia, gosta da comida caseira da namorada e de longos passeios com seus três cachorros. Seu profundo conhecimento da costa de sua cidade natal, Ventura, permite que fique em casa e mesmo assim surfe muito. Poucos surfistas locais possuem um entendimento tão extenso sobre qual combinação de maré, ondulação e vento transformará uma onda ruim num tubo perfeito. Dane é mestre em decifrar essas nuances. Não fosse pelos vídeos publicados quinzenalmente em seu blog, aguardados pelo mundo do surf como último capítulo de novela, ninguém saberia que o surf mais contemporâneo do planeta está acontecendo longe dos holofotes, numa pacata cidadezinha da Califórnia.“Dane pode não agradar a todos no mundo do surf”, explica o talentoso fotógrafo Morgan Maasen, seu amigo. “Mas encontrou um caminho próspero e confortável que alimenta a alma e dá sentido a sua vida. Isso é mais importante do que qualquer título mundial.” *Steven Allain é diretor editorial da revista Hardcore Vai lá: www.marinelayerproductions.comDane Reynolds, o surfista mais empolgante em atividade no mundo, tornou-se quase um herói ao abrir mão das competições e caminhar na contramão
O homem do ano
Disco com inéditas, biografia, HQ, documentário, filme de ficção: dez anos depois de sua morte, Mauro Mateus dos Santos – para os amigos de infância, Maurinho; para todo o Brasil, Sabotage – ainda é o cara
Murilo Meirelles
Sabotage
"Na sua meninice, ele um dia me disse que chegava lá.
Olha aí! Olha aí! Olha aí, ai, o meu guri, olha aí..."
Mauro Mateus dos Santos, maestro da periferia, ator de cinema, traficante dos dois revólveres na cinta, namoradinho da Dalva, filho da guerreira dona Ivonete, devoto de Iemanjá e sobretudo um devoto do rap nascido na favela do Canão, zona sul de São Paulo, disse em sua última entrevista, publicada postumamente na Trip de março de 2003, que Chico Buarque poderia muito bem estar falando dele quando escreveu o samba “O meu guri”. “Aquilo era o meu retrato no morro”, contou Sabotage, ou simplesmente Maurinho, que se descrevia na entrevista como “o cara que olha nas bolinha dos zoio”.
Sabotage completaria 40 anos no dia 3 de abril, mas não chegou ao 30º aniversário. Na madrugada de 24 de janeiro de 2003, às 5h50, quatro tiros lhe atingiram boca, ouvido e coluna cervical. Dez anos após sua morte, o autor do icônico “Rap é compromisso” (2000) é tema de um documentário, uma biografia, um disco com músicas inéditas e um filme de ficção. O produtor Denis Feijão negocia ainda com a família levar a vida de Sabotage ao cinema, sob direção de Walter Carvalho. Enquanto filmava com Carvalho o documentário Raul – O início, o fim e o meio, sobre Raul Seixas, o produtor conheceu Wanderson “Sabotinha”, primogênito do rapper. Na mesma época, foi apresentado a Jonathan Azevedo, o Negueba, ator espichado do grupo de teatro Nós do Morro, que tinha um sonho: fazer o papel de Sabotage num filme. “Ele é muito igual, tem os cacoetes, faz rima”, afirma Feijão.
A produção ainda não confirma, mas chegou à família a informação de que a viúva, Dalva, poderá ser vivida por Mariana Ximenes (a atriz diz que não sabe de nada, mas “adoraria”). Ela, Sabotage e Paulo Miklos, do Titãs, estrearam no cinema juntos, com O invasor (2001), de Beto Brant. Sabotinha, hoje com 20 anos, diz que poderá interpretar o pai quando bem jovem, na época do tráfico. Em fase de pesquisa e roteirização, o filme de Walter Carvalho talvez ganhe estrutura narrativa semelhante à de I’m not there, cinebiografia em que vários atores se revezaram no papel de Bob Dylan. “Acho impossível ter uma ficção [convencional] de personagens como ele, como Raul, Cazuza ou Tim Maia”, diz Feijão.
Ele define Sabotage como “o nosso 2Pac”, em referência ao rapper americano Tupac Shakur, morto a tiros, em 1996. No documentário , que Feijão também ajuda a produzir, Sabotage se mostra um homem múltiplo. O cineasta Beto Brant, que o dirigiu, o alinha a Chico Science e Bob Marley. O amigo Rappin’ Hood compara: é o Garrincha do rap brasileiro. Para Alê de Maio, autor dos quadrinhos que estão nesta reportagem, era o Che Guevara das quebradas.
Alexandre de Maio
Diretor do documentário, Ivan Ferreira quer colocá-lo na praça até o fim do ano. Já são 11 anos rodando: Ivan tinha 20 anos e era, como se define, um “maloqueiro playboy de Perdizes” quando entrevistou Sabotage pela primeira vez. Agarrou o desafio de costurar as “várias histórias desencontradas” sobre o homem por trás do mito – de uma suposta “letra de amor” escrita para o colega Mauricio Manieri até histórias de tempos menos adocicados numa boca de drogas na Vila da Paz, favela onde Sabotage morou nos anos 90.
O álbum com 11 faixas inéditas tem produção de antigos parceiros: Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Rica Amabis, da banda Instituto. O disco, conta Tejo, “mostrará tudo o que ele é capaz de fazer”, o sincretismo musical que juntou o rap a gêneros como samba e rock. Já a biografia é assinada por Toni C., autor de O hip-hop está morto. Toni não conheceu seu biografado. Por pouco: o encontro aconteceria no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, onde o músico tinha compromisso naquele 24 de janeiro. Sabotage disse a amigos que pretendia estar de volta a São Paulo no dia seguinte, aniversário da cidade.
Há controvérsias
“Quando se trata de Sabotage, há muitas histórias mal contadas”, diz Toni. Segundo ele, por exemplo, diferente do que está cravado na Wikipédia e até em sua lápide, foi no dia 3 de abril, e não 13, que o filho de Júlio dos Alves Santos e Ivonete Mateus de Melo veio ao mundo. Aos 15 anos ele conheceu o pai, vulgo Julião Carroceiro, que às vezes aparecia bêbado. A mãe foi doméstica, costurou, passou. Fez de tudo um pouco para sustentar três filhos – o caçula, Maurinho, Deda, que se envolveu com o tráfico e morreu nos anos 90, e Paulinho, “sem saúde mental”, segundo Toni C. O barraco deles na favela do Canão não existe mais – a área, na avenida Jornalista Roberto Marinho, virou canteiro de obras do metrô. Crescer nessa quebrada formou o músico e o militante. Sabotage consagrou o lema “respeito é pra quem tem” em seu único disco, Rap é compromisso, lançado pelo selo Cosa Nostra, dos Racionais MC’s de Mano Brown. “Ele enxergava o rap como instrumento de mudança. Com o microfone na mão, a gente tem responsabilidade de levar nosso povo para coisas melhores. Povo preto, pobre, da periferia”, resume Rappin’ Hood.
Hoje, o Canão se restringe a poucas vilinhas, algo parecidas com a do seriado Chaves. Sabotage continua sendo “o cara” por lá. Seu rosto está grafitado num muro, e Tainá, jovem de 15 anos, carrega um pôster da irmã mais velha que exalta o “poeta, guerreiro e sobrevivente”. Rosângela dos Santos, 37, conheceu o menino no colégio. Lembra de um diálogo recorrente do colega, “corintiano roxo”, com uma professora “que pegava no pé dele”:
– Ô, Mauro! Mauroooo! Cadê sua lição?
– Tá aqui. Minha lição é minha música.
O aluno mostrava o caderno rabiscado com composições. Sabotage, que cursou o ensino fundamental, foi guardador de carros e feirante, falava em ser office-boy, mas entrou no tráfico mais ou menos na época em que a mulher, Maria Dalva, engravidou de Wanderson (as datas são incertas: o próprio Sabotage relatou à Trip que, aos 8 anos, já vendia droga). Antes disso, sem grana, Sabotage usava camisetas suas como fraldas para o bebê. De repente, fraldas descartáveis, leite em pó e outros “luxos” entraram na rotina. Opção que “ajudou a família”, diz o documentarista Ivan.
Mil grau
Mesmo com a nova atividade, que o levou a andar armado, não deixou a música de lado. Quando reencontrou Rappin’ Hood, camarada da zona sul com quem pegava metrô ao voltar do Clube da Cidade nos anos 80, deu seu número de bip (não tinha celular) e combinou de entregar fitas cassete com músicas suas. O material foi parar nas mãos do rapper Sandrão, do RZO. “Aquele moleque foi considerado ‘mil grau’. Era o momento dele”, diz Hood.
No começo dos anos 2000, o “mil grau” já pegava fogo: aparecia no Altas horas, da Globo, nos programas da MTV, no cinema – além de O invasor, fez Carandiru, de Hector Babenco, lançado meses após ele morrer. Sabotage, que chegou a passar pela antiga Febem e foi autuado duas vezes por porte de arma e tráfico, “nunca puxou cana”, diz Toni C. Mas sacava bem o Carandiru, onde tios e o irmão Deda ficaram presos. Numa cena antológica do filme, seu personagem beija a bunda de Rita Cadillac.
Alexandre de Maio
Segundo Rappin’Hood, pessoas “do movimento” estranharam o “Sabota” mainstream, fazendo show “em casa noturna de playboy”. Mas Sabotage transitava bem entre muitos meios e tinha amigos tão variados quanto Chorão, do Charlie Brown Jr., e os rapazes do Instituto. Hood e Sandrão chegaram a ir à boca de fumo para buscá-lo e falar com “o patrão”. O papel de Sabotage na boca, diz Rappin’, era o bê-á-bá: “Chegava a caranga: ‘Quantas vai, parceiro?’. E ele servia”. Até que a própria rapaziada do tráfico falou pros amigos: “Ele tem talento mesmo pra esse bagulho, tem mais é que cantar”.
Foi o que Sabotage fez até morrer. Gravou todos os dias daquela semana até ser alvejado na sexta-feira, na avenida Professor Abraão de Morais, no Jardim Saúde. Ia pegar um ônibus após deixar a “patroa” na concessionária na qual ela era auxiliar de cozinha. Morreu no hospital, cinco horas e meia depois. Essa história de amor, como tudo mais, começou no Canão. “Coisa de criança”, define Dalva. Aos 18 anos, a menina branca de cabelos claros reencontrou o namorado de infância. “A gente não chamava atenção pela cor, mas pelo cabelo espetado dele.” Tiveram dois filhos, Sabotinha e Tamires, de 18 anos. E há outra filha, hoje adolescente, que ele teve fora do casamento.
Duas coisas tiravam Sabotage do sério. “Quando tava com fome e quando ficava sem...”, diz Sabotinha, fazendo o gesto universal do “fumar um”. Ele conta que o pai também era chegado no vinho San Tomé, que lia muito (de jornal a dicionário) e escutava de tudo (de rap gringo a Sandy & Júnior). E que as trancinhas arrepiadas o obrigavam a dormir de bruços.
Em 13 de julho de 2010, um júri de quatro homens e três mulheres determinou que Sirlei Menezes da Silva era culpado pelo homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e impossibilidade de defesa) desse pai de família. A pena do réu, preso em 2004: 14 anos de prisão. Foi o último caso do promotor Carlos Talarico, hoje procurador da Justiça. “O processo indicava que, meses antes, ele estava com cada pé numa canoa: não sabia se a arte ia render ou se iria para a vida marginal.” Sabotage sabia que “tinha inimigos, de tretas antigas. Falava: ‘Se eu fizer sucesso, a inveja dos caras não vai deixar eu viver em paz’”, recorda Rappin’Hood, até hoje amigo da família que ainda mora no barraco de dois andares no Boqueirão, último endereço de Sabotage. “O sonho dele era sair da favela”, diz ele, que tem aconselhado os filhos do amigo a lutar por um bom acordo financeiro antes de dar OK à ficção que Walter Carvalho pretende rodar. “É real o bagulho. Não vem com caô, vem com contrato.”
Dalva ganha R$ 810 como auxiliar de limpeza numa filial do curso de línguas Fisk. Lembra de ter recebido só uma vez por direitos autorais do marido, pouco mais de R$ 2 mil. “Tá ruim ainda. Com fé em Deus, vai melhorar.”
A revolução será impressa
Cerca de 30 anos atrás, Kalle Lasn sofreu uma epifania em um estacionamento de supermercado. O motivo: para usar o carrinho de compras, era preciso inserir uma moeda de 25 centavos na máquina. Chocado pela primeira vez com o fato pueril, ele enfiou a dita-cuja com tanta força que acabou quebrando o dispositivo. Foi apenas uma das várias lutas de Kalle contra a máquina – não a do supermercado, mas a maior delas, que faz as engrenagens do status quo girarem. Sua arma é a Adbusters (algo como “Caçadores de propagandas”), revista que criou em 1989. As páginas são recheadas de subvertisings (anúncios subvertidos) – Joe Camel, o mascote dos cigarros Camel, por exemplo, vira Joe Chemo, em alusão a chemotherapy (quimioterapia). Slavoj Zizek, Noam Chomsky e outros bambambãs da filosofia e das Não há seções fixas nem anunciantes. A revista se sustenta com a venda em bancas, assinaturas (a circulação hoje bate a casa dos 120 mil exemplares) e outros produtos comercializados pela Adbusters Media Foundation, como livros, DVDs e até tênis. De sua discreta redação em Vancouver, no Canadá, saíram ideias para movimentos que ganharam o mundo, como o TV Turnoff Week, o Buy Nothing Day e, o mais impactante deles, Occupy Wall Street. Embora não assuma sua paternidade, a Adbusters foi autora do primeiro pôster convocatório para a ação (uma bailarina dançando em cima da estátua de touro, símbolo do centro financeiro, com os dizeres: “Qual a nossa única demanda?/ #OccupyWallStreet/ 17 de setembro/ Traga barraca”) e da hashtag que inundou as redes sociais. Desfeitos os acampamentos em Zucotti Park, a resposta para a pergunta que o pôster colocava continua no ar. Mas seus efeitos ainda reverberam pelo planeta. “Occupy foi o começo de algo muito profundo. Foi a prova de que os jovens perceberam que, se não lutarem, não terão um futuro”, diz Kalle, por telefone. O senhor revolucionário, no entanto, não dormiu na praça. Permaneceu em sua chácara com árvores, horta e lago, localizada a 50 quilômetros de Vancouver, onde mora com Masako Tominaga, sua mulher, um pastor-alemão e a sogra – visitando o casal, há cinco anos, ela sofreu um derrame cerebral, que paralisou metade de seu corpo e a impediu de voltar para casa. “É como se eu tivesse duas vidas. A de militante e a de homem do campo. Adoro plantar, faço compostagem”, conta. Ele só vai à redação de três a quatro vezes por semana, sempre à tarde. Reprodução/Adbusters Algumas da capas mais emblemáticas dos 24 anos da Adbusters Nascido em Tallinn, na Estônia, há 71 anos, Kalle tem idade para ser avô da maioria de seus seguidores. “Com dois anos, morei em um campo de refugiados na Alemanha. Vi a Segunda Guerra, o Maio de 68, a Guerra do Vietnã... Vi muita coisa nesta vida. Tive várias pequenas epifanias que me levaram a quebrar aquela máquina naquele dia e me tornar um ativista”, rememora, com a voz animada como a de um garoto. A seguir, Kalle quebra tudo de novo: Na época, Occupy Wall Street parecia uma revolução. Hoje há quem diga que seus efeitos se diluíram. O que você acha? Por que precisamos de uma nova esquerda? E esse novo ativismo deixa você otimista? "Acredito no poder dos jovens de se erguerem e inventarem uma transformação radical na política, na ecologia, no jeito que consumimos, que lidamos com as corporações e com os bancos. Acho possível que haja esse momento de singularidade, de verdade plena" Vamos para o buraco então? Naomi Klein (autora do livro Sem logo) criticou a Adbusters dizendo que ela detona o sistema replicando estratégias dele, como quando lançou uma linha de tênis própria, a Blackspot Shoes. O que você acha disso? O design é muito importante na Adbusters. A revolução tem que ser bonita? Qual a próxima campanha da Adbusters?Aos 71 anos, morando isolado no campo, este homem toca a revista que fez milhares de ativistas ocuparem Wall Street e praças do mundo todo. Conheça Kalle Lasn e a Adbusters
ciências políticas contemporâneas são colaboradores frequentes. A direção de arte anárquica (uma edição foi toda feita com imagens em baixa resolução, deixando tudo pixelado) é hoje objeto de estudo em faculdades de design.
OWS foi o começo de algo muito profundo. Foi a prova de que jovens do mundo todo perceberam que, se eles não levantarem e lutarem, não terão um futuro. Pegamos todos – esquerda e direita – de surpresa. Foi o surgimento de uma nova esquerda. Ela não tem nome ainda, nem cara. Mas talvez não precise de nenhuma das duas coisas. Ela não é vertical, como a esquerda antiga era. Sabe usar as mídias sociais, tem filosofias novas. Estamos diante de um novo jeito de fazer ativismo.
Porque a antiga é ineficiente. Por isso que a Adbusters e os movimentos criados por ela cresceram tão rápido. Ela carece de criatividade. Nos anos 60, ela era cool, vibrante, dominava o discurso. Era inspiradora. Depois, perdeu o fio da meada, principalmente depois do colapso da URSS. Gritam os mesmos slogans, insistem nas mesmas lutas. Sempre falamos isto na revista: “Precisamos passar por cima do cadáver da velha esquerda”.
Não tanto quanto gostaria. Acho que outros big bangs como OWS virão, mas ainda estamos na defensiva. Pussy Riot, Espanha, Grécia... estão todos na defensiva. Há a sensação de que algo grande aconteceu, mas agora ninguém sabe muito bem o que fazer. Por outro lado, vejo um grande colapso no horizonte, uma crise financeira, ambiental e psicológica que pode durar anos. Em 1929 [ano da Grande Depressão], havia petróleo, peixes no mar e a Amazônia para nos ajudar a nos reerguer. Da próxima vez, não teremos no que nos apoiar.
Espero que não. Ainda acredito no poder dos jovens de se erguerem e inventarem uma transformação radical na política, na ecologia, no jeito que consumimos, que lidamos com as corporações e com os bancos. Acho possível que haja esse momento de singularidade, de verdade plena.
Um monte de gente não entendeu o Blackspot Shoes. Por anos, o discurso da esquerda era de que não podemos usar Nike, pois eles são feitos com mão de obra escrava na Ásia. Pois bem. Em vez de tentarmos fazer a Nike mudar de ideia em relação a sua cadeia produtiva, preferimos fazer nossa própria marca, que operasse de forma justa e responsável. Mas a esquerda não gosta de marca. Na verdade, ela não gosta de fazer coisas. Só gosta de criticar. Por que não podemos ter nosso próprio café, nossa música, nosso tênis?
Não gosto de dividir forma e conteúdo. Para ser poderoso, um conceito deve ser bonito, inspirador. Se você é chato, só usa o alfabeto para transmitir sua mensagem, ninguém vai te escutar. Gosto de acreditar que somos pioneiros de uma nova estética. Ela é mais emocional, jazzy, espontânea. Se você quer mudar o mundo, tem que mudar a cara dele. A estética imperante hoje é clean, como as propagandas. Precisamos fazer arte de outro jeito, mudar a sensação de entrar numa loja, numa banca de jornal. Isso é, talvez, a luta mais importante para mim.
Nosso objetivo agora é mudar as bases da teoria econômica. Por isso o livro Meme wars [veja mais abaixo]. Ah, também estamos pensando em fazer acampamentos em frente a todas as 73 sedes do Goldman Sachs, um dos maiores bancos de investimento do mundo.
Reprodução/Adbusters
A capa de Meme Wars
É isso meme!
Meme wars, último lançamento da Adbusters Media Foundation, ganhará uma versão brasileira. O livro disseca – e derruba – as bases da teoria econômica neoclássica, tida como responsável pela crise planetária atual. Mais que isso, indica o caminho para a criação de um novo paradigma econômico, capaz de levar em conta aspectos psicológicos e ambientais, quase sempre deixados de lado por economistas. Tal qual na Adbusters, o visual é riquíssimo. Seu maior objetivo, diz Kalle, é “dar um passo além de OWS, formar economistas com o pé no chão”. Dentre os pensadores que colaboraram com textos, está o americano ganhador do Nobel Joseph Stiglitz.
A edição made in Brasil será independente. Bruno Torturra Nogueira, repórter especial da Trip, assina a edição, e o designer Pedro Inoue, também colaborador da casa e da própria Adbusters, cuida da arte. A ideia é distribuir exemplares em universidades, vender pela internet e nas sedes da Casa Fora do Eixo, parceira na empreitada. O lançamento oficial será no Emergência, encontro de redes de ativismo e comunicação que acontece no mês de agosto em São Paulo.
Guilherme Arantes
Pedro Matallo
Guilherme Arantes
Guilherme Arantes não esconde de ninguém o gosto que tem pela música que mexe com o povo. Seu nome é sinônimo de pop romântico no Brasil, graças a um sem número de multiplatinadas trilhas de novelas e por aparições memoráveis diante dos maiores auditórios do país nos anos 70 e 80. Os Racionais MCs amam o cara. João Gilberto é só elogios a dele. Os novos nomes da música moderna o colocam em um patamar de cult. Enquanto isso continua compondo, continua gravando e continua lançando, desta vez de forma independente, a música que faz há quatro décadas.
"Tentei fazer um disco que fosse sanguíneo, que saísse sangrando emocionalmente. Minha tentativa foi fazer um disco furioso."
Seu mais recente disco é o Condição Humana, lançado pelo seu selo Coaxo do Sapo e gravado em seu estúdio-retiro no norte da Bahia, “perto de Salvador, que é um belo hub de embarque para todo o país”, como o próprio comenta. Produzido por ele mesmo com participações de peso que vão de Luiz Carlini a Edgard Scandurra, passando pelo quase-pupilo Marcelo Jeneci e por um coro com alguns dos maiores nomes da música contemporânea no Brasil, o cantor, compositor e pianista volta à cena com um disco de rock, que bebeu nos anos 70 as influências que desfila entre levadas harrisonianas. No que ganhou do próprio o apelido de “coral dos moderninhos”, Guilherme contou com a participação de um imenso coro na gravação da música “Onde Estava Você”: ali estavam Tulipa Ruiz, Kassin, Curumin, Thiago Pethit, Adriano Cintra (Madrid, ex-CSS), Mariana Aydar, Duani, Bruna Caram e Tiê, todos colaborando com o ídolo em seu primeiro disco desde Piano Solos, de 2011.
Guilherme recebeu a Trip em um cuidadosamente iluminado salão de jantar no hotel Marabá, centro de São Paulo, onde falou sobre a nova fase na carreira, a admiração pela música popular de fato, o pacto pelo fracasso no underground paulista e sobre como fazer um disco de pop rock sair da prensa sangrando.
O nome do disco é Condição Humana, que é um título bem forte. Como rolou a escolha do nome? Tem a ver com o momento que você está vivendo hoje?
O nome nasceu da música-título, que é um ragga rock. A letra fala sobre um planeta em mutação e eu vejo isso como uma coisa linda. Mas é um mundo tão instável e no qual a nossa condição é tão precária, que eu vejo que vivemos vidas perigosíssimas. Seja pelo vulcanismo ou qualquer fenômeno natural, tudo pode acabar em uma lambida do Sol. Vivemos a verticalização demográfica do planeta em uma ascendente exponencial preocupante. Não há emprego, planejamento familiar, nem nada. Vivendo em uma orgia de consumo da qual a humanidade faz questão de não se dar conta. Assim vamos em direção a um colapso. O mundo é estranho hoje e funciona de uma forma neutralizadora. É um mundo de paradoxos, com grandes problemas, ao mesmo tempo que encontra soluções magistrais. O nome vem dessas análises, dessa noção do ser humano viver preso à Terra enquanto procura distâncias cada vez mais insondáveis no universo. Tentei fazer um disco que fosse sanguíneo, que saísse sangrando emocionalmente. Minha tentativa foi fazer um disco furioso.
Você escreveu durante a produção do disco que queria fazer um disco “de colhões”. Ficou satisfeito com o resultado?
Muito! Sinto que o Condição Humana tem uma delicadeza especial enquanto tem uma pegada muito forte do meu piano. O piano é a âncora do meu som. É nele que sou único e é nele que reside “o som do Guilherme Arantes”. Não é um piano delicado, de cauda, tocado de forma sutil. É um piano de armário, socado, tocado com mão de pedreiro [risos]. Considero meu piano bem mais furioso do que o piano do Marcelo Jeneci, por exemplo, ou do Silva, que são pianos mais sutis. Sou mais espalhafatoso [risos]. Minha referência de piano vem de Ray Charles, Jerry Lee Lewis, que lembra um pouco o do Billy Joel, enfim, um piano mais de rock.
"O que está faltando para essa geração conseguir o sucesso do povo é sair desse gueto do 'o que a comunidade vai achar'. É como se um vigiasse o outro dizendo: 'olha, ninguém pode estourar, hein?'. Se estourar é mico..."
Pedro Matallo
A capa de Condição Humana, de Guilherme Arantes
Qual é o seu disco que mais tem a ver com o Condição Humana?
Meu primeiro disco [Guilherme Arantes, 1976], que saiu pela Som Livre e tinha “Cuide-se Bem”, “A cidade e a Neblina”, é muito bom. Ele traz uma bagagem toda de uma vida pregressa que você despeja no primeiro disco. Por isso existe a síndrome do segundo disco, que você não tem mais toda a vida pra ajudar [risos]. O Janeci é que está vivendo esse terror agora. Eu falo dele porque somos muito próximos e vivemos tirando sarro um do outro pelas similaridades nas nossas carreiras. Mas o Coração Paulista (1980), que é um disco bem mais roqueiro, parece mais com esse novo disco. Só que, no meu modo de ver, ele é um disco que não tem canções tão poderosas e inspiradas como o Condição Humana tem. Claro que tem algumas boas, como “Brasília” com o Boca Livre e a própria “Coração Paulista” com o Arnaldo Baptista (Mutantes) e com a Lucinha Turnbull (Tutti-Frutti) nos vocais. Mas olhando de uma maneira geral, acho que esse disco novo é único. É o que tem a maior energia concentrada de toda a minha carreira.
Foi bom você falar da Lúcia, porque eu queria te perguntar sobre ela. Ela completa 60 anos agora no fim de abril. Como foi trabalhar com uma pessoa que é tão talentosa e injustiçada no rock nacional como ela?
Eu conheci a Lucinha através do Liminha. Foi ele quem trouxe a Lúcia para a gravação de “Coração Paulista”. Ele era dos Mutantes e amigo de loga data dela. Isso foi em 1980, então já era pós-Rita Lee & Tutti-Frutti. O Liminha era o produtor do disco e tentou muito me fazer mais roqueiro [gargalhadas]. Ele fez dois discos meus e produziu muito bem o Coração Paulista. É um baixista monumental com um sentido de música aguçadíssimo. Ela é um barato; morava no Rio e dizia pro Liminha que me adorava. Por um tempo nós fomos bem amigos. É uma pessoa maravilhosa e uma guitarrista brilhante. Podíamos ter explorado mais a presença dela naquela música, mas é uma participação da qual eu me orgulho. Seus vocais eram perfeitos.
Qual era o seu objetivo final no que diz respeito à sonoridade?
Queria trazer de volta a minha sonoridade dos anos 70, algo que lembrasse o “Lindo Balão Azul” e coisas com essa pegada de piano. Fiquei muito satisfeito por podermos refazer várias vezes as músicas até chegarmos ao som definitivo que procurávamos. Fui buscar influências de R.E.M, de George Harrison e até de coisas bem mais pop rock basicão. Não abri mão de procurar a tal da batida perfeita [risos]. Ou melhor, a levada perfeita.
"Chegou uma hora que eu disse: 'Caramba! Eu ainda estou vivo como poeta'. Me sinto tão bom quanto sempre fui, senão melhor"
Mesmo assim você fez questão de não abrir mão de canções mais melódicas...
Com certeza. Tem músicas mais delicadas no disco. Tem até uma canção de gesta [música medieval dos trovadores da alvorada da literatura francesa no século XI] chamada “O Castelo do Reino”, uma música antiga que eu fiz com 14 anos, e que é uma coisa super renascentista. Pra mim, é um ponto alto do disco. É uma música que leva o ouvinte para um mundo da corte.
É nessa música que está uma das letras mais complexas do disco. Como foi esse processo de composição das letras em um disco tão autoral?
Acredito que me superei bastante como letrista nesse disco. Sinto que tive boas sacadas em várias letras, o que foi ótimo para mim. Chegou uma hora que eu disse: "Caramba! Eu ainda estou vivo como poeta". Me sinto tão bom quanto sempre fui, senão melhor. Fiquei muito feliz com o resultado final de uma forma geral. Estou passando por um momento virtuoso onde sinto que posso homenagear sonoramente coisas que eu acredito, como a Legião Urbana.
Você sente que houve influências dessa geração do rock no som do novo disco?
Sem dúvidas. Eu diria que são influências diretas. Por exemplo, na música “Moldura do Quadro Roubado”, eu fiz uma melodia que lembra muito “Índios”, da Legião. Essa música da banda é uma coisa ascensional que tem alguns dos sons mais lindos que eu já ouvi na vida. Então sinto que consegui juntar um pouco de tudo que eu sei fazer bem. O reggae que tem no disco não é purista e nem dub querendo ser style. É um reggae mais MPB que lembra mais um Djavan ou um som mais fusion de Los Angeles. Tem mais uma cara Maroon 5 ou até Stevie Wonder.
E qual o limite da mistura? Ainda existe isso na música brasileira?
O limite é o bom senso e isso é uma coisa que eu tenho de sobra [risos]. Houve bom senso de olhar, refletir, demorar-se a fazer uma canção. É um defeito da modernidade essa rapidez e esse imediatismo da rede social. Está faltando que as pessoas parem de postar um pouco para acumularem informação e energia. Isso mostra um pouco o colapso do modernismo.
Como assim?
A Semana de 22 fará em breve 100 anos. E esse modernismo foi uma espécie de combate ao excesso de academicismo e eruditismo na arte e na cultura. Oswald de Andrade e companhia se manifestavam por um mundo veloz, de imediato e rápido, onde a arte seria mais expontânea e menos elocubrada. Mais direta e veloz. E no fim do século XX, onde realmente o imediatismo se instalou na sociedade, acabamos com músicas ralas e de texturas bobas que não dizem nada para a minha geração. Eu gosto de compositores como Chico Buarque, que trazem um nível alto de lavoura poética em cima de seu trabalho. O cara vai ao limite da busca antes de dizer: “isso aqui está pronto e eu vou mostrar”. Então é isso que eu quero dizer: o que está faltando ao mundo é menos velocidade e mais erudição.
Mas você não sente que, lentamente, as pessoas estão se movendo em direção a essa “nova onda”? Hoje não faltam bandas com integrantes super novos que fazem pós-rock e sons mais “atmosféricos” cheios de referências eruditas mas que não tem nada a ver com progressivo, por assim dizer. Você não acha que essa mudança está chegando lentamente ao rock contemporâneo?
Vejo isso como uma consequência do que comentei anteriormente. As pessoas estão começando lentamente a responder a esse colapso do modernismo. Estão tentando burilar mais longe disso. A minha praia, dentro da minha especialidade que é a harmonia, exigiria mais acabamento das pessoas. Falta amor à música, gente indo para a noite aproveitar a efervescência cultural de uma cidade. O colapso do “pop star system” está ajudando nisso e fazendo as pessoas a trabalhar mais por prazer e por idealismo. São essas pessoas que cultivam o amadorismo, no bom sentido, que vão fazer a diferênça. Cantar por diletantismo. E não é nem que os jovens não têm amor à música. Os velhos também o perderam.
"Precisamos dos feios, dos nerds, dos melancólicos e dos desajustados para mover-nos adiante"
Algum exemplo em especial?
O mais claro, na minha opinião, é o do João Gilberto. Ele cantava no Ó Bom Gourmet com fumaça de cigarro, som ruim, ar condicionado ligado e barulhão de copos e de conversa, sendo que nada disso o impedia de subir no palco e cantar: “bim bom bim bom” [cruza as pernas e imita a voz do bossanovista]. O cara fazia uma revolução na música dentro de um bar barulhento cheio de fumaça de cigarro. Aí hoje o cara não suporta nenhum desses elementos, que dirá todos! [risos]. Como é que pode isso? Eu vejo isso como algo muitíssimo engraçado. Fora que é estranha essa perseguição que há com o cigarro hoje. Eu vejo como uma questão sintomática da tentiva de transformar tudo em clean. Se o mundo fosse assim, nunca teríamos Miles Davis, nem Rolling Stones, nem ninguém assim. Precisamos dos feios, dos nerds, dos melancólicos e dos desajustados para mover-nos adiante
O que parece é que estão tentando acabar com a ânsia de intoxicação das pessoas pra com isso uniformizar todo o panorama cultural. Claro que existem exceções, mas você acha que essa tentativa é geral e irrestrita?
O mundo só aclama quando vem existe um ruído e um estranhamento. É o único jeito. A música hoje tem que ser bem feita ao mesmo tempo que tem uma pegada transgressora. Por exemplo, a Maria Gadú. Ela é a cantora perfeita para essa geração. Ela é uma grande cantora mas que tem uma aspereza magistralmente dosada na voz. A mistura dessas características faz com que ela tenha hoje um produto musical perfeito. É um bom produto no nosso tempo. Ela nasceu com um troço louco. Eu me julgo um bom olheiro. Sei bem quando um artista é promissor.
"A obra de Mano Brown é maior que a de muitos poetas consagrados como Manuel Bandeira, por exemplo. Vão achar um absurdo um dizer isso. Mas imagina! Mano Brown é muito maior que Manuel Bandeira"
Falando em artistas promissores, você convocou um “coral dos moderninhos” para colaborar em Condição Humana. Como foi a seleção?
Eu adoro a música popular e esse métier da MPB, que inclui também você ser fã dos outros artistas. Mas por mais que você viva de música, você não pode perder o amadorismo. O entusiasmo é a palavra chave para essa geração que eu convidei pra gravar o coro de “Onde Estava Você”. Foi um exercício de alegria juntar todo esse pessoal no estúdio. Um exercício de felicidade sobre o que a gente faz. Estamos num ramo fodido e sem perspectiva de um grande retorno, mas nenhuma dessas pessoas quer o mainstream nem ser um popstar. Eu sempre fui um cara assim. Eu logrei muito êxito e consegui um sucesso popular, que é totalmente diferente de conseguir um sucesso de crítica. Com o povo, não tem marketing. O povão é arredio a isso e exige um fluir de verdade e sinceridade dentro de você. Quem me abriu os olhos pra isso foi o Mano Brown, dos Racionais MCs.
Pedro Matallo
Guilherme Arantes
Você e o Brown já trocaram elogios publicamente. Como é sua relação com ele?
Nos papos que a gente teve eu cheguei a perguntar. “Mas como é possível vocês [dos Racionais] gostarem tanto de mim?”. Porque a minha admiração por ele é bem objetiva. Acho o Brown um gênio da poesia em língua portuguesa. Ele é um esgrimista magistral das palavras. Ele tem um fluir de pensamento que é uma coisa complexa, de construções de uma beleza incrível. A obra dele é maior que a de muitos poetas da Academia Brasileira de Letras. Maior do que a de poetas consagrados como Manuel Bandeira, por exemplo. Vão achar um absurdo um dizer isso. Mas imagina! Mano Brown é muito maior que Manuel Bandeira. Acho o Bandeira um poeta maravilhoso, mas é aristocrático e tradicional demais quando comparado ao Brown. Os Racionais são uma coisa grandiosa.
E qual foi a resposta do Brown para sua pergunta. O que ele gosta no som do Guilherme Arantes?
Ele gosta das harmonias e das levadas. Ele fala da minha música com um entusiasmo que eu não conseguia entender. Sinto que eles estão aliciando minha obra para um público onde eu não imaginava ter fãs. O que ele me disse foi o seguinte: “Você sempre agradou os pobres. Você queria ser cantor popular, ser um cantor de auditório. Você foi no Sílvio Santos, no Bolinha e no Chacrinha porque você queria agradar as meninas pobres. Todo mundo, minha mãe, minhas tias, minhas primas, meu povo do Capão. Você entra na lista de Roberto Carlos, de Amado Batista. E não é qualquer um que entra nesse mundo da gente”. E aí eu entendi isso. Que eles sentem essa coisa sangrando da minha música, que vem de dentro mesmo. A elite é fácil de ludibriar pelo marketing. O povo de verdade, não.
Como você relaciona essa visão do Mano Brown com essa galera que você convidou para o coro no seu disco?
Essa geração que eu chamei é uma geração que existe no mundo todo. São os alternativos, os descolados. Eles são todos designers, videomakers, bloggers, jornalistas e produtores. É uma amálgama de profissões. O que está faltando para essa geração conseguir o sucesso do povo, do popular, é sair desse gueto do “o que a comunidade vai achar”. E eu falei abertamente com eles sobre isso. É como se um vigiasse o outro dizendo: “olha, ninguém pode estourar, hein?”. Se estourar é mico...
"Na minha geração teve as bandas do pop rock Ipanema/Leblon. Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Lulu Santos, Marina Lima, enfim... Todos cariocas de classe média alta e todos tentando fugir ao máximo do mico da breguice, do mico de ser popular."
É uma espécie de patrulha do underground?
Existe mesmo isso. E já aconteceu antes. Na época da Vanguarda Paulista, havia desde o início um pacto com o fracasso. E isso prejudicou muito carreiras como a de Itamar Assumpção e do Arrigo Barnabé. Ambos compositores maravilhosos que poderiam facilmente ter se tornado populares. Mas é preciso ter um pouco de vontade de ser povo para conseguir isso. Na minha geração teve as bandas do pop rock Ipanema/Leblon. Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Lulu Santos, Marina Lima, enfim... Todos cariocas de classe média alta e todos tentando fugir ao máximo do mico da breguice, do mico de ser popular. Sou de uma geração anterior. Eu frequentava a Jovem Guarda e ia aos festivais. Eu vi Caetano Veloso cantar “Alegria, Alegria” ao vivo no auditório. Não fui espectador distante disso. Eu estava lá. Então fui muito contaminado por essa histeria em torno do sucesso das bandas que aconteceu no mundo todo. Eu tinha vontade de viver um pouco a minha Jovem Guarda. Sempre gostei do povo. Nunca quis ser blindado contra a popularidade. E isso ou a pessoa gosta, ou não gosta. Por isso que eu sempre digo que não me importo se me acham brega.
Essa é uma frase recorrente sua. E ela é boa porque não quer dizer que você se ache brega.
Justamente. As pessoas vêem como uma pecha ser considerado brega. Mas eu não. E a frase é justamente essa. Eu não me importo em ser considerado brega. É diferente de ser brega. Se eu digo que não me importo em ser brega, é porque eu penso que sou. Mas o cara que compôs pra Elis Regina, com Nelson Motta, para Maria Bethânia, que era elogiado pelo Tom Jobim, por João Gilberto, não pode se considerar brega porque é o que as pessoas acham. Não sou nativo do povão nem venho de uma classe desfavorecida. Mas eu quis ser popular e agradar aos pobres. Por isso hoje o Mano Brown chega pra mim e fala: “Minhas irmãs adoram você. Você nunca cagou goma pros pobres enquanto muitos dos seus colegas só cagavam goma pra nóis”. Mas eu me considero um privilegiado. Tive muita sorte. Porque quando é bom ser considerado chique, sou elogiado. E quando é bom ser considerado popular, eu também sou. [risos]. Pego o melhor dos dois mundos.
Reprodução
O coral completo que integra o disco novo de Guilherme Arantes
O coral responde
Alguns dos convidados especiais de Guilherme Arantes falam sobre a participação no disco Condição Humana
Tulipa Ruiz: "No dia da gravação estava muito feliz com o convite e foi uma surpresa chegar no estúdio e ver tantos amigos, tantos músicos que o tem como inspiração. E foi incrível vê-lo satisfeito e comovido com toda aquela gente no estúdio, regendo o grupo todo empolgado. Toda hora alguém do coro dizia 'bicho, é o Guilherme Arantes!'. Sou fã desde pequena, desde 'Balão Azul'. Na infância e na adolescência ouvia suas músicas no rádio e todas eram hit, dava vontade de cantar. Guilherme Arantes faz parte da minha formação musical."
Curumin: "O Guilherme é muito intenso no estúdio e montou um arranjo muito bonito para o coral. Além da música ser um lindo clássico guilhermistico [risos]. Sou da época que o que tocava na rádio era o que a gente ouvia. Então, claro, ouvi muito Guilherme Arantes. Ele tem esse lance melódico muito bonito e cria aquela sensação de que você está voando. Foi muito legal ouvir a música no estúdio e sacar ele e a banda ainda fazendo som como antigamente."
Marcelo Jeneci: "Guilherme Arantes também é meu pai. Meu primeiro encontro com ele se deu quando ele veio a minha casa ouvir o disco que eu acabava de lançar, Feito pra Acabar. Foi um reencontro no primeiro encontro. Sou muito fã e fui influenciado direta e indiretamente por ele desde minha infancia. Guilhermão, I love you!"
Kassin: "Foi maravilhoso. Sou grande fã do Guilherme, então pra mim foi lindo poder participar de algo dele. A musica que gravamos é linda e ficou na minha cabeça desde entao. Escutei muito à música dele na minha formação musical. A relação dele com a harmonia é riquissima e isso é lindo de ver nos hits. São musicas com caminhos harmônicos personalíssimos."
Thiago Pethit: "Gravamos em um estúdio em SP, numa tarde inteira até o dia acabar. Toda a experiência foi muito tocante. Primeiro o convite, o Guilherme ligando de um a um... Imagina, receber uma ligação do Guilherme Arantes! É algo muito particular, nunca poderia imaginar isso. Acho que ainda não entendi de todo o que significa ter feito parte da história dele. Encontramos diversos amigos, trocamos fofocas, nervosismos pela presença no disco na hora de gravar e tudo o mais. E quando chegou a hora de aprender as melodias no piano, já estávamos todos 'em casa' e super a vontade. O trabalho do Guilherme transcende e muito a própria obra dele. É uma referência para tantos sons que vieram depois... Não saberia dizer o que dele tem no meu trabalho, porque não é uma referência clara e óbvia. Mas outras coisas que eu escutei muito e me influenciam, foram fundamentadas pela influência do som dele."
Bruna Caram: "Foi inesquecível estar no estúdio gravando com o Guilherme! Fiquei muito feliz por dividir os microfones com meus manos-de-geração, tenho orgulho do cenário cada vez mais vário e rico da música brasileira, e é muito bom se sentir parte de uma geração marcante. O Guilherme também representa uma geração, e suas canções embalaram a vida de todos nós, eu ouvi muito a música dele quando era criança, meu pai adorava, ouvia muito! O clima no estúdio era esse: de alegria, de orgulho, de força! Foi uma honra. Estávamos cantando em turma, em bando, e o Guilherme passando nota por nota e regendo o coro! Completamente emocionante e inspirador. Compus uma música assim que saí de lá, dentro do carro."
Ouça o disco na íntegra no Soundcloud:
Vai lá: www.guilhermearantes.com.br